Francisco Quinteiro Pires
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ CULTURA
Edição das obras completas no Brasil evidencia atualidade do filósofo alemão
Se houvesse os 10 mandamentos do capitalismo, o primeiro seria - "Não criticarás o capitalismo em vão." O risco é padecer no inferno. O filósofo Theodor W. Adorno (1903-1969) foi acusado de negativista e niilista por ter apontado a perversão do iluminismo e as semelhanças entre capitalismo e totalitarismo. Ele mostrou que existe por aí muita irracionalidade camuflada de boa moça da razão. Para tirar o pensador alemão do limbo, a que foi jogado nos anos 1970, porque suas críticas teriam envelhecido, é necessário reler suas obras à luz dos dilemas atuais. A oportunidade chegou.
A Editora Unesp tem previsão de lançar 21 volumes, incluindo traduções inéditas. A Coleção Adorno se divide em quatro coletâneas: Escritos Sobre Música; Escritos sobre Sociologia; Indústria Cultural e Escritos de Psicologia Social e Psicanálise. A coordenação do projeto está a cargo de quatro especialistas: Jorge de Almeida, Ricardo Barbosa, Rodrigo Duarte e Vladimir Safatle.
Os primeiros lançamentos são As Estrelas Descem à Terra (tradução de Pedro R. de Oliveira) e Introdução à Sociologia (tradução de Wolfgang L. Maar). No primeiro, Adorno estuda, nos anos 1950, a coluna astrológica do jornal Los Angeles Times, editada por Carroll Righter, consultor de atores de Hollywood. O segundo contém o último curso do filósofo na Universidade de Frankfurt - é uma apresentação das categorias fundamentais da teoria social de Adorno. Ambos mostram como a crítica adorniana ao capitalismo não se desqualificou. Para Vladimir Safatle, professor de filosofia na USP, a iniciativa editorial evidencia que Adorno está cheio de novidades e à espera de leitores. Leia a seguir trechos da entrevista com Safatle.
Adorno andou fora de moda, não?
Adorno foi considerado obsoleto a partir dos anos 1970. Sua teoria social estaria ultrapassada diante das novas configurações do capitalismo. Sua teoria estética estaria ultrapassada com o envelhecimento das vanguardas. Sua filosofia seria um beco sem saída, que operava sem síntese. Adorno seria incapaz de indicar um critério renovado de racionalidade. Hoje temos condição de ver como a avaliação era equivocada. Sua teoria social vai ficar cada vez mais atual, mas para isso é necessário reler seus textos. Somos o futuro pensado pela experiência intelectual adorniana.
Por que Adorno é um dos filósofos incontornáveis do século passado?
Ele é um filósofo fundamental na constituição do campo da sociologia, da estética, em especial a musical, e mesmo da psicologia social do século 20. Do ponto de vista filosófico, sua obra foi capaz de desenvolver série de respostas a questões maiores do pensamento contemporâneo que não foram completamente elaboradas, como o seu conceito de sujeito e a sua concepção de linguagem. A obra de Adorno precisa ser descoberta.
Adorno foi um crítico do iluminismo.
Sua relação com a tradição da racionalidade moderna é ainda hoje proveitosa. Ele tratou de mostrar como valores, princípios e processos fundamentais para a constituição da razão moderna inverteram as suas expectativas. Enquanto se esperava realizar a emancipação, apareceu um processo de dominação instrumental tanto da natureza quanto do indivíduo. Se pensamos em constituir um critério seguro de moralidade, ele se inverteu em perversão. Adorno teve sensibilidade para notar a inversão do projeto iluminista.
Um dos elementos que mais chamaram a atenção de Adorno na análise da coluna astrológica, que resultou em As Estrelas Descem à Terra, é a intencional exploração da fraqueza do ego dos leitores. Mais de 50 anos depois, como está essa exploração?
A leitura desse texto é impressionante pela sua atualidade. Um leitor de 2008 consegue entender claramente as questões de Adorno tendo em vista os jornais dos anos 50. O que ele procurava entender era por que os leitores, que não acreditavam totalmente nas colunas, deixavam pautar suas ações por algo fundamental dentro de uma visão de mundo. Uma visão de mundo que se faz dominante, entre outras coisas, por meio de uma coluna de astrologia. É impossível compreender os efeitos da indústria cultural sem ter uma teoria elaborada do sujeito, da subjetividade e da vida psíquica. A subjetividade com a qual Adorno se confrontou na aurora do século 20 encontrou seu amadurecimento na nossa época. Ele identificou o processo que vivemos hoje. Não podemos mais pensar o sujeito a partir de categorias psíquicas tradicionais, que o tratam como um ser autônomo, dono de uma expressão autêntica.
Na fase atual do capitalismo existe uma tendência fascista latente? Podemos falar que ela se acentuou?
A tendência fascista é uma questão presente nos textos do Adorno, mas antes é necessário compreender que ele não falou de capitalismo e totalitarismo como assuntos idênticos. Ele entendia ser necessária uma teoria sobre o fascismo para compreender no que as nossas sociedades são totalitárias. Num texto sobre a propaganda fascista, ele diz que ninguém acreditava na ideologia do fascismo. Sequer os seus próprios líderes. Todos faziam uma performance, representavam seu próprio entusiasmo. Essa idéia é fundamental. Totalitarismo é baseado no fato de que o poder não exige engajamento do sujeito ao discurso do poder. O poder pede que representemos nosso engajamento e permite que tenhamos distância do que fazemos. Eu posso agir sem acreditar. Ou, por não acreditar, eu posso continuar fazendo. Para crer no que faço deveria ter uma ética da convicção, impossível de ser exigida em crises de legitimidade como a nossa. Essa distância é fundamental no totalitarismo e no capitalismo. É elemento central, pois permite a perpetuação de estruturas de poder.
Isso soa bem familiar.
É só pegar alguém como Silvio Berlusconi (primeiro-ministro da Itália). Ninguém em última instância acredita numa figura como a dele, totalmente desqualificada. Mas por isso ele pode se perpetuar. Ele não exige nenhuma crença. Assim, o sujeito não só se torna incompatível com sua ação, como sua ação se torna suportável. Em Adorno, a análise da ideologia é sobre as disposições de conduta dos indivíduos. Cada vez mais hegemônicas, essas disposições são sintomas de uma consciência dividida entre aquilo que ela faz e aquilo em que acredita. Faz 20 anos um pensamento insiste na obsolescência da crítica da ideologia. Agora podemos com Adorno recuperar grandes categorias do pensamento sem adotar um viés tradicional.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ CULTURA
Edição das obras completas no Brasil evidencia atualidade do filósofo alemão
Se houvesse os 10 mandamentos do capitalismo, o primeiro seria - "Não criticarás o capitalismo em vão." O risco é padecer no inferno. O filósofo Theodor W. Adorno (1903-1969) foi acusado de negativista e niilista por ter apontado a perversão do iluminismo e as semelhanças entre capitalismo e totalitarismo. Ele mostrou que existe por aí muita irracionalidade camuflada de boa moça da razão. Para tirar o pensador alemão do limbo, a que foi jogado nos anos 1970, porque suas críticas teriam envelhecido, é necessário reler suas obras à luz dos dilemas atuais. A oportunidade chegou.
A Editora Unesp tem previsão de lançar 21 volumes, incluindo traduções inéditas. A Coleção Adorno se divide em quatro coletâneas: Escritos Sobre Música; Escritos sobre Sociologia; Indústria Cultural e Escritos de Psicologia Social e Psicanálise. A coordenação do projeto está a cargo de quatro especialistas: Jorge de Almeida, Ricardo Barbosa, Rodrigo Duarte e Vladimir Safatle.
Os primeiros lançamentos são As Estrelas Descem à Terra (tradução de Pedro R. de Oliveira) e Introdução à Sociologia (tradução de Wolfgang L. Maar). No primeiro, Adorno estuda, nos anos 1950, a coluna astrológica do jornal Los Angeles Times, editada por Carroll Righter, consultor de atores de Hollywood. O segundo contém o último curso do filósofo na Universidade de Frankfurt - é uma apresentação das categorias fundamentais da teoria social de Adorno. Ambos mostram como a crítica adorniana ao capitalismo não se desqualificou. Para Vladimir Safatle, professor de filosofia na USP, a iniciativa editorial evidencia que Adorno está cheio de novidades e à espera de leitores. Leia a seguir trechos da entrevista com Safatle.
Adorno andou fora de moda, não?
Adorno foi considerado obsoleto a partir dos anos 1970. Sua teoria social estaria ultrapassada diante das novas configurações do capitalismo. Sua teoria estética estaria ultrapassada com o envelhecimento das vanguardas. Sua filosofia seria um beco sem saída, que operava sem síntese. Adorno seria incapaz de indicar um critério renovado de racionalidade. Hoje temos condição de ver como a avaliação era equivocada. Sua teoria social vai ficar cada vez mais atual, mas para isso é necessário reler seus textos. Somos o futuro pensado pela experiência intelectual adorniana.
Por que Adorno é um dos filósofos incontornáveis do século passado?
Ele é um filósofo fundamental na constituição do campo da sociologia, da estética, em especial a musical, e mesmo da psicologia social do século 20. Do ponto de vista filosófico, sua obra foi capaz de desenvolver série de respostas a questões maiores do pensamento contemporâneo que não foram completamente elaboradas, como o seu conceito de sujeito e a sua concepção de linguagem. A obra de Adorno precisa ser descoberta.
Adorno foi um crítico do iluminismo.
Sua relação com a tradição da racionalidade moderna é ainda hoje proveitosa. Ele tratou de mostrar como valores, princípios e processos fundamentais para a constituição da razão moderna inverteram as suas expectativas. Enquanto se esperava realizar a emancipação, apareceu um processo de dominação instrumental tanto da natureza quanto do indivíduo. Se pensamos em constituir um critério seguro de moralidade, ele se inverteu em perversão. Adorno teve sensibilidade para notar a inversão do projeto iluminista.
Um dos elementos que mais chamaram a atenção de Adorno na análise da coluna astrológica, que resultou em As Estrelas Descem à Terra, é a intencional exploração da fraqueza do ego dos leitores. Mais de 50 anos depois, como está essa exploração?
A leitura desse texto é impressionante pela sua atualidade. Um leitor de 2008 consegue entender claramente as questões de Adorno tendo em vista os jornais dos anos 50. O que ele procurava entender era por que os leitores, que não acreditavam totalmente nas colunas, deixavam pautar suas ações por algo fundamental dentro de uma visão de mundo. Uma visão de mundo que se faz dominante, entre outras coisas, por meio de uma coluna de astrologia. É impossível compreender os efeitos da indústria cultural sem ter uma teoria elaborada do sujeito, da subjetividade e da vida psíquica. A subjetividade com a qual Adorno se confrontou na aurora do século 20 encontrou seu amadurecimento na nossa época. Ele identificou o processo que vivemos hoje. Não podemos mais pensar o sujeito a partir de categorias psíquicas tradicionais, que o tratam como um ser autônomo, dono de uma expressão autêntica.
Na fase atual do capitalismo existe uma tendência fascista latente? Podemos falar que ela se acentuou?
A tendência fascista é uma questão presente nos textos do Adorno, mas antes é necessário compreender que ele não falou de capitalismo e totalitarismo como assuntos idênticos. Ele entendia ser necessária uma teoria sobre o fascismo para compreender no que as nossas sociedades são totalitárias. Num texto sobre a propaganda fascista, ele diz que ninguém acreditava na ideologia do fascismo. Sequer os seus próprios líderes. Todos faziam uma performance, representavam seu próprio entusiasmo. Essa idéia é fundamental. Totalitarismo é baseado no fato de que o poder não exige engajamento do sujeito ao discurso do poder. O poder pede que representemos nosso engajamento e permite que tenhamos distância do que fazemos. Eu posso agir sem acreditar. Ou, por não acreditar, eu posso continuar fazendo. Para crer no que faço deveria ter uma ética da convicção, impossível de ser exigida em crises de legitimidade como a nossa. Essa distância é fundamental no totalitarismo e no capitalismo. É elemento central, pois permite a perpetuação de estruturas de poder.
Isso soa bem familiar.
É só pegar alguém como Silvio Berlusconi (primeiro-ministro da Itália). Ninguém em última instância acredita numa figura como a dele, totalmente desqualificada. Mas por isso ele pode se perpetuar. Ele não exige nenhuma crença. Assim, o sujeito não só se torna incompatível com sua ação, como sua ação se torna suportável. Em Adorno, a análise da ideologia é sobre as disposições de conduta dos indivíduos. Cada vez mais hegemônicas, essas disposições são sintomas de uma consciência dividida entre aquilo que ela faz e aquilo em que acredita. Faz 20 anos um pensamento insiste na obsolescência da crítica da ideologia. Agora podemos com Adorno recuperar grandes categorias do pensamento sem adotar um viés tradicional.
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