Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
As finanças mundiais se derretem, e quem sabe onde irá parar a crise econômica. Mas temos aqui o processo da eleição municipal em andamento.
Provavelmente a indagação mais reiterada a respeito delas, e que mais comentários suscita por suas possíveis implicações para 2010, é a da influência de Lula. Até que ponto os resultados da eleição corroborariam a idéia de que o forte apoio popular ao presidente e a alta aprovação de seu governo resultariam em beneficiar os candidatos apoiados por ele?
O que há talvez de mais singular na eleição de agora relaciona-se de maneira equívoca com a possível resposta à pergunta. Refiro-me a algo que todos têm apontado: o caráter marcadamente " governista " ou " situacionista " do clima geral da eleição, favorecendo tanto prefeitos que se candidataram à reeleição quanto os candidatos associados a prefeitos e governadores bem avaliados pelo eleitorado. Parece claro que esse " governismo " , beneficiando gente de diferentes partidos, pode ser ligado às condições gerais subjacentes à própria intensidade do apoio a Lula. Ainda que possa haver, no caso de Lula, ingredientes difusos relacionados a sua imagem popular, parte importante do " lulismo " se explica pelas boas notícias no campo econômico e social geral. E se isso faz bem a Lula como titular da Presidência, não há razão para que não faça bem igualmente aos titulares de outros níveis de governo que os eleitores percebam como tendo bom desempenho. Como mostrou com especial eficiência matéria de César Felício e Marta Watanabe no Valor de dias atrás (edição de 3, 4 e 5 de outubro), tivemos forte correlação entre o êxito eleitoral previsto nas pesquisas e o aumento nas receitas municipais como efeito combinado do crescimento econômico e de mudanças em diversos itens da legislação relativa à arrecadação municipal e às transferências dos Estados e da União para os municípios.
Naturalmente, o " governismo " , assim entendido, se aplica mesmo a casos que têm tido leitura contrastante, em particular (dada a suposta relevância para 2010) o de Serra-Kassab em São Paulo e o de Aécio/Pimentel-Lacerda em Belo Horizonte. Afinal, os números relativos ao desfecho do primeiro turno são análagos nos dois casos, e é sem dúvida uma proeza " governista " a conquista pelo " poste " Lacerda da liderança no primeiro turno da eleição em BH. Que essa conquista tenha tido sabor de derrota (e perigue transformar-se em derrota consumada), em contraste com o sabor e o provável fato do triunfo em São Paulo, tem a ver com a dinâmica das pesquisas, o avanço precoce de Lacerda e a afirmação gradual dos trunfos pessoais de Quintão como candidato - e, com certeza, a confusão produzida em boa parte do eleitorado belo-horizontino pelas manobras excessivamente complicadas e mesmo arrogantes de Aécio e Pimentel, embora a idéia básica da aproximação PT-PSDB seja, a meu ver, perfeitamente defensável num plano normativo ou doutrinário.
Isso permite introduzir, ao lado de 2010 e do possível peso de Lula daqui a dois anos, um elemento de sociologia política de nível mais " profundo " . Quanto a Lula, bem pesadas as coisas (ou seja, com a segura " pós-visão " que a abertura das urnas permite...), não parece haver razão para ligar as condições do " governismo " à presunção de que lhe bastasse (a ele como a qualquer outro) declarar apoio a quem quer que fosse para assegurar a vitória do apoiado. Mas, a menos que o derretimento econômico alcance o Brasil bem mais do que se espera, seria precipitado deixar de contar com a força de Lula num processo de disputa referido à Presidência da República e em que ele surgisse associado longa e intimamente com determinado nome - embora Dilma, em certo sentido até pelas razões que impedem vê-la como mero " poste " , me pareça difícil de carregar.
Mas o elemento de sociologia política acima aludido remete a algo mais. Em interessante entrevista publicada na " Folha de S. Paulo " de 6 de outubro, Fernando Limongi, com base em trabalho sobre as eleições municipais em São Paulo executado em colaboração com Lara Mesquita, vê a atual clivagem paulistana entre PT e anti-PT como a substituição e o prolongamento, de que o PSDB seria o frágil beneficiário, da antiga polarização entre Maluf e anti-Maluf, com o arraigado conservadorismo " direitista " paulistano ganhando nova face. É claro, a idéia do PSDB como instrumento de um " direitismo " que transita do anti-Maluf ao anti-PT tem a contrapartida de um PT afim a Maluf do ponto de vista do eleitor.
Sabe-se há muito que, nas condições brasileiras em geral, o eleitor de um Maluf ou um Collor acaba sendo em ampla medida o mesmo eleitor de Lula, ou do PT como tal. Mas uma das razões a justificar o anseio por um partido popular que se tornasse institucionalmente sólido consiste justamente no anteparo ao populismo personalista e no positivo substituto funcional deste na dinâmica democrática que ele viria então a representar, sobretudo em condições em que o processo eleitoral passa a traduzir-se socialmente com nitidez, como mostra a intensa correlação entre o voto e a posição socioeconômica dos eleitores que a eleição em São Paulo exibiu de novo. Pessoalmente, julgo que os recursos e orientações que marcavam o PSDB original prometiam ser trunfos valiosos naquela tarefa de construção institucional nessa faixa de compromisso popular e social. Não creio que o partido se sinta confortável no desvio a que as circunstâncias dos enfrentamentos eleitorais o levaram. E lamento a fragilização resultante tanto no nível da conexão com as bases eleitorais, que Limongi salienta, quanto no das incertezas e problemas nas relações entre as próprias lideranças partidárias.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
As finanças mundiais se derretem, e quem sabe onde irá parar a crise econômica. Mas temos aqui o processo da eleição municipal em andamento.
Provavelmente a indagação mais reiterada a respeito delas, e que mais comentários suscita por suas possíveis implicações para 2010, é a da influência de Lula. Até que ponto os resultados da eleição corroborariam a idéia de que o forte apoio popular ao presidente e a alta aprovação de seu governo resultariam em beneficiar os candidatos apoiados por ele?
O que há talvez de mais singular na eleição de agora relaciona-se de maneira equívoca com a possível resposta à pergunta. Refiro-me a algo que todos têm apontado: o caráter marcadamente " governista " ou " situacionista " do clima geral da eleição, favorecendo tanto prefeitos que se candidataram à reeleição quanto os candidatos associados a prefeitos e governadores bem avaliados pelo eleitorado. Parece claro que esse " governismo " , beneficiando gente de diferentes partidos, pode ser ligado às condições gerais subjacentes à própria intensidade do apoio a Lula. Ainda que possa haver, no caso de Lula, ingredientes difusos relacionados a sua imagem popular, parte importante do " lulismo " se explica pelas boas notícias no campo econômico e social geral. E se isso faz bem a Lula como titular da Presidência, não há razão para que não faça bem igualmente aos titulares de outros níveis de governo que os eleitores percebam como tendo bom desempenho. Como mostrou com especial eficiência matéria de César Felício e Marta Watanabe no Valor de dias atrás (edição de 3, 4 e 5 de outubro), tivemos forte correlação entre o êxito eleitoral previsto nas pesquisas e o aumento nas receitas municipais como efeito combinado do crescimento econômico e de mudanças em diversos itens da legislação relativa à arrecadação municipal e às transferências dos Estados e da União para os municípios.
Naturalmente, o " governismo " , assim entendido, se aplica mesmo a casos que têm tido leitura contrastante, em particular (dada a suposta relevância para 2010) o de Serra-Kassab em São Paulo e o de Aécio/Pimentel-Lacerda em Belo Horizonte. Afinal, os números relativos ao desfecho do primeiro turno são análagos nos dois casos, e é sem dúvida uma proeza " governista " a conquista pelo " poste " Lacerda da liderança no primeiro turno da eleição em BH. Que essa conquista tenha tido sabor de derrota (e perigue transformar-se em derrota consumada), em contraste com o sabor e o provável fato do triunfo em São Paulo, tem a ver com a dinâmica das pesquisas, o avanço precoce de Lacerda e a afirmação gradual dos trunfos pessoais de Quintão como candidato - e, com certeza, a confusão produzida em boa parte do eleitorado belo-horizontino pelas manobras excessivamente complicadas e mesmo arrogantes de Aécio e Pimentel, embora a idéia básica da aproximação PT-PSDB seja, a meu ver, perfeitamente defensável num plano normativo ou doutrinário.
Isso permite introduzir, ao lado de 2010 e do possível peso de Lula daqui a dois anos, um elemento de sociologia política de nível mais " profundo " . Quanto a Lula, bem pesadas as coisas (ou seja, com a segura " pós-visão " que a abertura das urnas permite...), não parece haver razão para ligar as condições do " governismo " à presunção de que lhe bastasse (a ele como a qualquer outro) declarar apoio a quem quer que fosse para assegurar a vitória do apoiado. Mas, a menos que o derretimento econômico alcance o Brasil bem mais do que se espera, seria precipitado deixar de contar com a força de Lula num processo de disputa referido à Presidência da República e em que ele surgisse associado longa e intimamente com determinado nome - embora Dilma, em certo sentido até pelas razões que impedem vê-la como mero " poste " , me pareça difícil de carregar.
Mas o elemento de sociologia política acima aludido remete a algo mais. Em interessante entrevista publicada na " Folha de S. Paulo " de 6 de outubro, Fernando Limongi, com base em trabalho sobre as eleições municipais em São Paulo executado em colaboração com Lara Mesquita, vê a atual clivagem paulistana entre PT e anti-PT como a substituição e o prolongamento, de que o PSDB seria o frágil beneficiário, da antiga polarização entre Maluf e anti-Maluf, com o arraigado conservadorismo " direitista " paulistano ganhando nova face. É claro, a idéia do PSDB como instrumento de um " direitismo " que transita do anti-Maluf ao anti-PT tem a contrapartida de um PT afim a Maluf do ponto de vista do eleitor.
Sabe-se há muito que, nas condições brasileiras em geral, o eleitor de um Maluf ou um Collor acaba sendo em ampla medida o mesmo eleitor de Lula, ou do PT como tal. Mas uma das razões a justificar o anseio por um partido popular que se tornasse institucionalmente sólido consiste justamente no anteparo ao populismo personalista e no positivo substituto funcional deste na dinâmica democrática que ele viria então a representar, sobretudo em condições em que o processo eleitoral passa a traduzir-se socialmente com nitidez, como mostra a intensa correlação entre o voto e a posição socioeconômica dos eleitores que a eleição em São Paulo exibiu de novo. Pessoalmente, julgo que os recursos e orientações que marcavam o PSDB original prometiam ser trunfos valiosos naquela tarefa de construção institucional nessa faixa de compromisso popular e social. Não creio que o partido se sinta confortável no desvio a que as circunstâncias dos enfrentamentos eleitorais o levaram. E lamento a fragilização resultante tanto no nível da conexão com as bases eleitorais, que Limongi salienta, quanto no das incertezas e problemas nas relações entre as próprias lideranças partidárias.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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