José de Souza Martins
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Governo se afasta da Igreja partidarizada, mas a populista se mantém firme na mescla de religião e partido
Dom Hélder Câmara, antecessor de dom José Cardoso no arcebispado de Olinda e Recife e de orientação pastoral radicalmente oposta à de seu sucessor, costumava distinguir entre primeira violência e segunda violência. A legitimidade da segunda violência decorre de sua inevitabilidade em face das consequências destrutivas da primeira. A vítima inocente e indefesa da primeira violência é uma vítima sem alternativa, sem condições de escapar à causação que decorre de uma violência sofrida previamente e sem possibilidade moral e até religiosa de não reagir, autodefensivamente, contra aquilo que a degrada, minimiza e machuca. Se a primeira violência desorganiza e destrói socialmente, a segunda violência procura restaurar o que foi dilacerado.
Inspirados nessas ideias, setores da Igreja Católica têm sido solidários com as vítimas das muitas iniquidades e perversidades que, como a que aconteceu agora em Pernambuco, são marcas atuais da sociedade brasileira. Não só solidários, mas ativos participantes de ações próprias da segunda violência. Bastaria lembrar da Pastoral Indígena e da Pastoral da Terra que, mesmo com suas confusas oscilações e vacilações, têm se engajado ativamente nas lutas sociais e partidárias, que muitos consideram violência. Não só em reação à vitimização dos desvalidos, mas até mesmo na construção de um projeto político para eles, o que extrapola o princípio da segunda violência. Eu lembraria do não menos confuso e difuso MST, nascido no interior da Pastoral da Terra e que tem tido apoio da Igreja.
Não foi apenas a questão do aborto protetivo, em defesa da saúde da menina violentada e engravidada pelo padrasto, que nestes dias trouxe a Igreja para uma pauta de discussão pública compreensível, mas problemática. Sobretudo na notória anomalia de excomungar a mãe da menina e os médicos e poupar o estuprador, que estuprou também a irmã da menina. Estupro, aliás, agravado no plano propriamente religioso porque simbolicamente incestuoso, praticado pelo pai putativo das crianças.
No outro extremo do cenário, o convite por encomenda para que a candidata de Lula à Presidência da República, Dilma Roussef, comparecesse à missa no Santuário do Terço Bizantino, em São Paulo, foi outro destaque problemático para a Igreja. Do lugar da celebração, que a mídia chamou de palco e que seria o presbitério, ao lado da imagem de uma santa, Dilma dirigiu ao público acenos de positivo, com o polegar levantado, como se estivesse num palanque. A visitante foi apresentada como presença ilustre na celebração.
Ora, ilustre numa missa é Nosso Senhor e ninguém mais, nem mesmo o celebrante. O altar é histórica e tradicionalmente o lugar da celebração do sacrifício de Cristo. Nem o sacerdote ali se exibe, já que o que entra no recinto sagrado é o seu carisma, por ele personificado, distinguido de sua pessoa física pelos atos preparatórios e rituais de sua purificação. O espaço da celebração católica, como o de outras religiões, é o espaço do sagrado, espaço hierarquizado. Mais sagrado, no templo, é o presbitério e no presbitério o sacrário, que é o sagrado do sagrado, porque lugar da eucaristia. A demarcação do território do rito, a ordenação sacerdotal do padre e os ritos envolvidos na celebração têm por objetivo, justamente, manter o recinto e os objetos sagrados longe de mãos e presenças impuras, destituídas do carisma do sacerdócio. Mesmo nas igrejas protestantes, a relação com o sagrado é uma relação mediada.
O círculo problemático se fecha com o conteúdo preocupante da entrevista que deu a Roldão Arruda o frei Betto, ex-assessor especial do presidente Lula. Ele foi coordenador da área de Mobilização Social do Programa Fome Zero e o principal instaurador e articulador da rede de agentes que é hoje a base de intermediação entre o governo e os 11 milhões de famílias e de eleitores beneficiados pelas doações governamentais. Preocupante porque confirma a denúncia do senador Jarbas Vasconcelos de que o Bolsa-Família é o maior programa de compra de votos do mundo. O frade dominicano entende que o Bolsa-Família representa o encolhimento do Fome Zero e sua redução à mera condição de instrumento eleitoral de um projeto de poder do PT e de Lula.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Governo se afasta da Igreja partidarizada, mas a populista se mantém firme na mescla de religião e partido
Dom Hélder Câmara, antecessor de dom José Cardoso no arcebispado de Olinda e Recife e de orientação pastoral radicalmente oposta à de seu sucessor, costumava distinguir entre primeira violência e segunda violência. A legitimidade da segunda violência decorre de sua inevitabilidade em face das consequências destrutivas da primeira. A vítima inocente e indefesa da primeira violência é uma vítima sem alternativa, sem condições de escapar à causação que decorre de uma violência sofrida previamente e sem possibilidade moral e até religiosa de não reagir, autodefensivamente, contra aquilo que a degrada, minimiza e machuca. Se a primeira violência desorganiza e destrói socialmente, a segunda violência procura restaurar o que foi dilacerado.
Inspirados nessas ideias, setores da Igreja Católica têm sido solidários com as vítimas das muitas iniquidades e perversidades que, como a que aconteceu agora em Pernambuco, são marcas atuais da sociedade brasileira. Não só solidários, mas ativos participantes de ações próprias da segunda violência. Bastaria lembrar da Pastoral Indígena e da Pastoral da Terra que, mesmo com suas confusas oscilações e vacilações, têm se engajado ativamente nas lutas sociais e partidárias, que muitos consideram violência. Não só em reação à vitimização dos desvalidos, mas até mesmo na construção de um projeto político para eles, o que extrapola o princípio da segunda violência. Eu lembraria do não menos confuso e difuso MST, nascido no interior da Pastoral da Terra e que tem tido apoio da Igreja.
Não foi apenas a questão do aborto protetivo, em defesa da saúde da menina violentada e engravidada pelo padrasto, que nestes dias trouxe a Igreja para uma pauta de discussão pública compreensível, mas problemática. Sobretudo na notória anomalia de excomungar a mãe da menina e os médicos e poupar o estuprador, que estuprou também a irmã da menina. Estupro, aliás, agravado no plano propriamente religioso porque simbolicamente incestuoso, praticado pelo pai putativo das crianças.
No outro extremo do cenário, o convite por encomenda para que a candidata de Lula à Presidência da República, Dilma Roussef, comparecesse à missa no Santuário do Terço Bizantino, em São Paulo, foi outro destaque problemático para a Igreja. Do lugar da celebração, que a mídia chamou de palco e que seria o presbitério, ao lado da imagem de uma santa, Dilma dirigiu ao público acenos de positivo, com o polegar levantado, como se estivesse num palanque. A visitante foi apresentada como presença ilustre na celebração.
Ora, ilustre numa missa é Nosso Senhor e ninguém mais, nem mesmo o celebrante. O altar é histórica e tradicionalmente o lugar da celebração do sacrifício de Cristo. Nem o sacerdote ali se exibe, já que o que entra no recinto sagrado é o seu carisma, por ele personificado, distinguido de sua pessoa física pelos atos preparatórios e rituais de sua purificação. O espaço da celebração católica, como o de outras religiões, é o espaço do sagrado, espaço hierarquizado. Mais sagrado, no templo, é o presbitério e no presbitério o sacrário, que é o sagrado do sagrado, porque lugar da eucaristia. A demarcação do território do rito, a ordenação sacerdotal do padre e os ritos envolvidos na celebração têm por objetivo, justamente, manter o recinto e os objetos sagrados longe de mãos e presenças impuras, destituídas do carisma do sacerdócio. Mesmo nas igrejas protestantes, a relação com o sagrado é uma relação mediada.
O círculo problemático se fecha com o conteúdo preocupante da entrevista que deu a Roldão Arruda o frei Betto, ex-assessor especial do presidente Lula. Ele foi coordenador da área de Mobilização Social do Programa Fome Zero e o principal instaurador e articulador da rede de agentes que é hoje a base de intermediação entre o governo e os 11 milhões de famílias e de eleitores beneficiados pelas doações governamentais. Preocupante porque confirma a denúncia do senador Jarbas Vasconcelos de que o Bolsa-Família é o maior programa de compra de votos do mundo. O frade dominicano entende que o Bolsa-Família representa o encolhimento do Fome Zero e sua redução à mera condição de instrumento eleitoral de um projeto de poder do PT e de Lula.
Na verdade, sua saída do governo pode ser vista de outro modo: o descarte da Igreja Católica pelo PT e pelo governo Lula. O primeiro episódio foi logo no início do primeiro mandato, quando o indicado pela Pastoral da Terra para a presidência do Incra, mandatário de uma reforma agrária mais agressiva, foi demitido e substituído por alguém mais identificado com o pacto de conciliação do governo com o grande capital e a grande propriedade. O segundo episódio foi, justamente o da saída do governo de frei Betto e seu principal auxiliar, Ivo Poletto, originário da Cáritas, da CNBB, e um dos fundadores da CPT e do MST. O terceiro episódio ocorre agora, com as medidas e articulações que o governo Lula está fazendo para enquadrar ou mesmo descartar o MST e sua reforma agrária radical e paralela.
Não obstante esse notório rompimento entre o governo e setores partidarizados da Igreja, o "evento" a que compareceu a ministra Dilma em São Paulo indica que uma igreja populista se mantém firme na mescla de religião com partido político. Por outro lado, em sua entrevista, o ilustre frade fez esta declaração esclarecedora: "Caso mude o governo - e queira Deus que não volte às mãos da oposição...", que representa a impugnação petista da concepção republicana da rotatividade de partidos no governo. Fica, então, muito claro, que o governo Lula repousa sobre um tripé estratégico: política econômica liberal, política social assistencialista e corporativismo político. Algo bem distante do que pensam e querem os setores mais petistas da Igreja e, certamente, muito distante do que precisa a democracia brasileira. Por trás da diversidade de acontecimentos desse cenário social e político temos a banalização do sagrado e a banalização da política.
*Professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
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