quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Você não vale nada, mas eu gosto de você!

Roberto DaMatta
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / CADERNO 2


Para Francisco Weffort, Luis Eduardo Soares e o DCE da PUC-Rio, pela inspiração.

Toda novela diz muito. A de Gloria Perez, “Caminho das Índias”, tem uma música que é a mais perfeita fórmula para este Brasil que nos irrita, mas enreda e que, por isso mesmo e apesar de tudo, jamais tiramos da cabeça e do coração. Quando a Argentina chega ao auge de uma crise, eles largam o país afirmando que a grande nação do tango é “una mierda!” Nós, no período da hiperinflação, da moratória, do sequestro da poupança, do mensalão e das grandes roubalheiras, rasgávamos nossos passaportes e decidíamos ficar. Tal como os personagens da novela — o guarda de trânsito Abel, marido da traidora Norminha — nós tínhamos que esperar “para ver no que dava”. Para termos certeza de que o Brasil era mesmo um país sem solução; ou para sentirmos o dragão inflacionário nos devorar. Vivíamos ao pé da letra, a letra da música do Dorgival Dantas, gravada por Calcinha Preta, que registra graficamente o drama entre Norminha e Abel: “Você não vale nada, mas eu gosto de você.

(Mas) Tudo o que eu queria era saber por quê, tudo o que eu queria era saber por quê!” Aí está, numa fórmula popular e abstrata, o que os grandes interpretes do Brasil — Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Paulo Prado, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, SérGilgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro, Florestan Fernandes, Vianna Moog, Celso Furtado e quem mais você quiser — tentaram explicar ou compreender: as razões pelas quais este país tão erradamente construído (de nobres, escravos e capitalistas sem competição, impostos e mercado), tão malformado por “raças inferiores”, tão desprovido de elites honradas e de estruturas legais, financeiras e de um economia e uma vida política capazes de gerar equidade e honestidade; tão afeito a éticas anti-igualitárias como a da condescendência, do nepotismo e da malandragem, não se autodestruía ou inspirava somente ódio, mas interpolava, entre o “você não vale nada, mas eu gosto de você”, essa cláusula de todas as redenções, esse arrebatador, porque paradoxal e compassivo: “Tudo o que eu queria era saber por quê; tudo o que eu queria era saber por quê!” Sim, porque, enquanto houver o desejo de compreender o elo entre o traidor e o traído, enquanto existir a busca para as razões do comportamento de uma Norma sem normas (ou limites) e o puro pastor Abel (guarda de trânsito) que a deixou viver sem essa consciência de fronteiras, fonte de todas as sinceridades e foco indispensável de uma vida honesta, há que se ter consciência do que já experimentamos e realizamos. Refiro-me ao fato concreto de livrar o Brasil de alguns dos seus males ditos crônicos e seculares. Não foi o que fizemos quando, por exemplo, o tiramos da escravidão e do autoritarismo dos militares?

Não foi o que realizamos quando, com o Plano Real, liquidamos o invencível dragão inflacionário? E não é o que hoje experimentamos neste governo do PT e do Lula que seria diferente, ideológico; que não roubava e deixava roubar; mas no qual vivemos uma extraordinária convergência não só de políticas econômicas, mas de estilos de governar no qual as coalizões espúrias e as ambições pessoais, a mentira e a mendacidade se repetem? A desgraça é que o Brasil, como a Norminha, tem muitas faces.

Há a que se livrou da hiperinflação com mais democracia, e há também a que corre o risco de liquidar-se no neocaudilhismo com a destruição de um partido ideológico, o PT, justo pelo seu líder mais importante, o Lula, na sua sofreguidão de fazer um sucessor. Eu não tenho a menor simpatia pelo radicalismo petista, mas estimo instituições. Tenho certeza de que o Brasil revela uma enorme carência de equilíbrio entre personalidades e valores internalizados indispensáveis ao seu bem-estar social.

Entre nós, basta um sujeito virar o “cara” para ele usar o execrável “Você sabe com quem está falando?” que, como eu (e não Gil berto Freyre, Caio Prado Jr ou Sérgio Buarque de Holanda) mostrei há trinta anos, coloca de quarentena as reflexões mais inocentes sobre a implantação da “cidadania” moderna, inseparável do liberalismo. É necessário fazer como os estudiosos do Brasil que não o abandonaram à sua sorte de país errado ou falido, mas amorosamente procuraram saber onde estava o elo entre o enganado e o enganador. O amor, a esperança e a eventual transformação estão na tentativa de saber por quê.

A beleza do laço entre Abel e Norminha reside no fato de que eles sabem que só se muda o que se ama. A tese do quanto pior melhor, que tanto animou a nossa esquerda, não funciona porque o conserto (ou a cura) é, entre os humanos, o limite. Não se trata somente de apontar a mendacidade do governo ou de enterrar o senador Mercadante. Não! É preciso descobrir, como manda o Dorgival, o porquê desse nosso amor por um tipo de poder que faculta a hipocrisia, a chantagem emocional, a roubalheira, a incúria administrativa e todos esses outros monstros que conhecemos tão bem. Se esses caras não valem mesmo nada, não basta execrá-los. É preciso saber por que nós — estão aí as estatísticas — os amamos tão apaixonadamente.

A desgraça é que o Brasil, como a Norminha, tem muitas faces. Qual a razão do amor?

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