Dádiva dos deuses, brinde dos fados, generosidade do destino ter o privilégio de abrir o jornal nesta sexta-feira e ler o seguinte desabafo:
"O que ocorre no País neste instante é inclassificável. É trágico, deprimente, inconcebível, sob todos os ângulos. Mas acredito que o grande responsável por tudo isso esteja passando incólume, etc. etc."
Quem teve a coragem de expressar publicamente tamanha indignação? A quem pertence esta voz embargada, encorpada pela ira sagrada, quem é este novo e bravo Quixote pronto para investir contra a imoralidade nacional?
Pasmem, apertem os cintos, reprimam o espasmo de vômito: o autor da ode em defesa da decência e da probidade é conhecido nacionalmente como José Sarney e desde fevereiro passado tornou-se o símbolo inconteste da indecência e da improbidade. Com esta peça extraída da sua mais recente arenga semanal na Folha de S.Paulo, o imortal escritor e vice-rei do Brasil dispensa-se para sempre de pegar no lápis, caneta ou teclado e redigir qualquer coisa, mesmo um cheque. Tríplice coroado: ganhou instantaneamente o Nobel do Cinismo, Oscar da Hipocrisia e Pulitzer da Dissimulação.
O que levou Sarney a perder o pudor e tirar a máscara de vítima da imprensa raivosa foi o grandioso espetáculo brasiliense, o maior show de corrupção já exibido neste País. O super-delator Durval Barbosa, o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, seus asseclas no governo, na Câmara Legislativa e no Judiciário são merecedores da nossa eterna gratidão. Ingênuos, imaginamos que depois do mensalão de 2005 encerrava-se um capítulo da nossa história. Já no ano seguinte, de forma ainda mais descarada e vil, começou a operar a gangue planaltina, cangaceiros do concreto.
Sarney colocou a culpa no nosso sistema eleitoral (que o elegeu como senador de uma capitania onde raramente coloca os pés, o Amapá, e mantém a sua família dona de outra, o Maranhão). Esqueceu de mencionar a pseudo-democracia oriunda de um sistema político degenerado que fabrica e fortalece partidos geneticamente devassos concebidos para vender votos em troca de verbas.
Sarney como sempre está errado: o Circo Arruda deve ser louvado, o desfile de vexames precisa ser abençoado. O País só erradicará esta vocação para a malfeitoria quando os escândalos tornarem-se efetivamente insuportáveis. Ainda conseguimos conviver com eles, achando graça quando apareceram dólares em cuecas e reais em meias.
O presidente do Congresso, refinado malandro, finge-se de santo, não quer mais escândalos. Na realidade teme que respinguem nele. Nós, ao contrário, queremos mais revelações aterradoras, quanto mais escabrosas, profundas e amplas, melhor. Só elas nos conduzirão à purgação saneadora. À pizza convencional acrescentaram-se agora os panetones, mas faltam os simbólicos brioches que antecipam a guilhotina. Chegaremos lá.
Por ora, convenhamos: a semana foi pródiga. O nome do presidente da Câmara Federal, Michel Temer, finalmente reapareceu numa lista de suspeitos por recebimentos ilícitos. Desde a morte do senador ACM, o jurista-deputado mantinha-se longe dos holofotes acalentando o sonho de ser vice na chapa de Dilma Rousseff. Agora terá que explicar-se.
Dádiva das dádivas: além da veneranda acusação de corrupto, Paulo Maluf foi finalmente enredado como criminoso comum, cúmplice da repressão durante a ditadura. Ao lado do senador-xerife Romeu Tuma, está sendo responsabilizado pela ocultação de corpos de presos políticos.
E, para completar, a sublime condenação do casal de bispos, Sonia e Estevam Hernandez, donos da igreja Renascer S.A.: quatro anos de reclusão ou penas alternativas. O importante é que deixam de ser primários, no próximo deslize vão para o inferno.
Este circo de horrores não deve ser interrompido. É preciso mantê-lo aberto, contínuo, feérico, intenso. José Roberto Arruda, o reincidente, é o exemplo vivo da grande impunidade.
» Alberto Dines é jornalista
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