DEU NO VALOR ECONÔMICO
A campanha presidencial se aproxima do fim, já permitindo um primeiro balanço do seu inventário, que mais à frente, será explorado nas análises acadêmicas e do jornalismo especializado no fato político. Mas, desde logo é evidente que, no registro desse inventário, a presença da religião ocupou um papel surpreendente, embora os candidatos que chegaram ao segundo turno eleitoral tenham perfis e históricos na vida pública bem definidos segundo os padrões laicos republicanos.
É verdade que essa presença não é inédita na nossa história eleitoral, notória nas eleições à assembléia constituinte de 1934, a partir das atividades da Liga Eleitoral Católica (LEC), fundada dois anos antes, que, sob a chancela de círculos da hierarquia católica, indicava uma lista de candidatos da sua preferência e vetava aqueles vistos como contrários aos seus princípios de doutrina. A LEC, nas primeiras eleições subsequentes ao Estado Novo ainda se fez presente, mas, aos poucos, perdido o apoio na alta hierarquia da Igreja, deixou de exercer qualquer influência.
A novidade, agora, está na ressurgência da importância da religião no voto, e sobretudo no fato decisivo de que a agenda dita comportamental e dos valores religiosos é também expressa com vigor nos setores subalternos, especialmente daqueles que, em razão das transformações sociais e dos sucessos econômicos do país nas últimas duas décadas, emergiram para se acrescentarem na composição das classes médias, em boa parte de adesão evangélica. Vale dizer, está insinuado que, para sensibilizá-los, é preciso ir além de um discurso orientado para conquistas materiais.
A votação em Marina nas periferias metropolitanas, embora tenha extrapolado em muito o fator religioso, impôs o reconhecimento de que a antropologia do voto tinha acabado de conhecer uma significativa mutação. Logo que se abre o segundo turno, foi isso que, por atos e palavras, as candidaturas de Serra e Dilma, vieram a admitir.
A partir daí, a inflexão religiosa dessas candidaturas revela o entendimento de que a secularização, há décadas impactando fortemente o comportamento das classes médias tradicionais brasileiras, brancas e cultivadas, vem tocando bem menos nos recém-chegados a essa fronteira social, escudados em valores religiosos que provém de cultos que se enraizaram no seu próprio meio. Para o bem e para o mal, a religião passa a ser reconhecida como portadora de um poder efetivo de veto nas escolhas majoritárias das competições políticas.
No rol desse inventário não pode faltar a questão social, que, durante esses longos meses de campanha, permitiu aos candidatos exibirem seus presumidos dons de verter dos céus leite e mel, ao lado de saneamento básico aqui na terra, mesmo que tenham optado por não nomear as fontes de que vão extrair os recursos para os prodígios prometidos, entre os quais um trem bala, projeto de faraós, a ligar a cidade de São Paulo ao Rio de Janeiro em meio a desfiladeiros de Alpes suíços. Com o compositor popular, pode-se perguntar, com que roupa que eu vou, ao samba que você me convidou?
E, assim, nesse balanço preliminar de uma competição ainda em andamento, os silêncios podem ser tão ou mais eloquentes do que o que é dito, porque as ladainhas rotineiras do horário político produzidas pelos marqueteiros não têm como suprir a ausência de programas políticos. Sob esse registro, essa campanha declinou da política, apresentando um cenário ocupado por um único ator, o governo e suas ações, recitando-se um monólogo para um público idealizado, como se ele não conhecesse, em sua vida real, os conflitos de interesses entre as classes e entre as concepções do mundo.
Foi, então, possível transitar lisamente sobre a questão agrária brasileira sem que fossem declaradas e debatidas pelos candidatos as suas posições sobre a atual estrutura fundiária, fora as invectivas sarcásticas de Plínio. Hoje, às vésperas das eleições, nada se sabe sobre como cada qual se situa nesse mundo que abriga uma fronteira agrária viva no norte e no centro-oeste do país - excepcionalidade brasileira em pleno século XXI -, e um dos vetores por onde se amplia e aprofunda o moderno capitalismo no país em forte conexão com políticas do Estado.
A ausência desse tema se tornou ainda mais excruciante pelo fato de que boa parte das controvérsias de natureza ambiental, como é de conhecimento generalizado, gravita em torno do mundo agrário e das atividades econômicas nele existentes. Finda a campanha, os candidatos finalistas, Serra e Dilma, saem limpos dessa pesada e incontornável questão, sem que se saiba sequer - um exemplo escandaloso - qual a posição deles sobre a reforma do Código Florestal, ora em andamento no Legislativo federal.
Passou-se batido, igualmente, sobre o tema sindical, embora tanto o PT como o PSDB contem em sua história e práticas de governo - no caso do PT, lembre-se do projeto de reforma do ministério Berzoini, em 2005 - com iniciativas contrárias à vinculação dos sindicatos ao Estado. Mesmo destino teve a questão estratégica dos rumos da industrialização do país, mesmo em plena "guerra cambial", cujos desdobramentos podem vir a ameaçá-la, para não falar das abrasivas matérias previdenciárias e tributárias. E, a propósito, por que nenhuma palavra, nem contra ou a favor, sobre o capitalismo politicamente orientado que se insinua por aí?
Resultou da campanha um retrato chapado do país, bem nos moldes do governo Lula, que trouxe para o seu interior todas as classes e todos os interesses relevantes, por mais contraditórios que fossem entre si. Pode-se cogitar, diante das circunstâncias, de que outros caminhos não levariam a melhores resultados, porque, sabemos todos, não é fácil o acesso ao voto em uma sociedade desigual como a nossa.
Mas, Lula, agora, será apenas um retrato na parede, e o candidato vencedor, com o que vem por aí, inclusive porque, qualquer que seja ele, contará com uma oposição forte e aguerrida, vai precisar muito da ajuda dos céus, tão invocado nessas eleições.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras
A campanha presidencial se aproxima do fim, já permitindo um primeiro balanço do seu inventário, que mais à frente, será explorado nas análises acadêmicas e do jornalismo especializado no fato político. Mas, desde logo é evidente que, no registro desse inventário, a presença da religião ocupou um papel surpreendente, embora os candidatos que chegaram ao segundo turno eleitoral tenham perfis e históricos na vida pública bem definidos segundo os padrões laicos republicanos.
É verdade que essa presença não é inédita na nossa história eleitoral, notória nas eleições à assembléia constituinte de 1934, a partir das atividades da Liga Eleitoral Católica (LEC), fundada dois anos antes, que, sob a chancela de círculos da hierarquia católica, indicava uma lista de candidatos da sua preferência e vetava aqueles vistos como contrários aos seus princípios de doutrina. A LEC, nas primeiras eleições subsequentes ao Estado Novo ainda se fez presente, mas, aos poucos, perdido o apoio na alta hierarquia da Igreja, deixou de exercer qualquer influência.
A novidade, agora, está na ressurgência da importância da religião no voto, e sobretudo no fato decisivo de que a agenda dita comportamental e dos valores religiosos é também expressa com vigor nos setores subalternos, especialmente daqueles que, em razão das transformações sociais e dos sucessos econômicos do país nas últimas duas décadas, emergiram para se acrescentarem na composição das classes médias, em boa parte de adesão evangélica. Vale dizer, está insinuado que, para sensibilizá-los, é preciso ir além de um discurso orientado para conquistas materiais.
A votação em Marina nas periferias metropolitanas, embora tenha extrapolado em muito o fator religioso, impôs o reconhecimento de que a antropologia do voto tinha acabado de conhecer uma significativa mutação. Logo que se abre o segundo turno, foi isso que, por atos e palavras, as candidaturas de Serra e Dilma, vieram a admitir.
A partir daí, a inflexão religiosa dessas candidaturas revela o entendimento de que a secularização, há décadas impactando fortemente o comportamento das classes médias tradicionais brasileiras, brancas e cultivadas, vem tocando bem menos nos recém-chegados a essa fronteira social, escudados em valores religiosos que provém de cultos que se enraizaram no seu próprio meio. Para o bem e para o mal, a religião passa a ser reconhecida como portadora de um poder efetivo de veto nas escolhas majoritárias das competições políticas.
No rol desse inventário não pode faltar a questão social, que, durante esses longos meses de campanha, permitiu aos candidatos exibirem seus presumidos dons de verter dos céus leite e mel, ao lado de saneamento básico aqui na terra, mesmo que tenham optado por não nomear as fontes de que vão extrair os recursos para os prodígios prometidos, entre os quais um trem bala, projeto de faraós, a ligar a cidade de São Paulo ao Rio de Janeiro em meio a desfiladeiros de Alpes suíços. Com o compositor popular, pode-se perguntar, com que roupa que eu vou, ao samba que você me convidou?
E, assim, nesse balanço preliminar de uma competição ainda em andamento, os silêncios podem ser tão ou mais eloquentes do que o que é dito, porque as ladainhas rotineiras do horário político produzidas pelos marqueteiros não têm como suprir a ausência de programas políticos. Sob esse registro, essa campanha declinou da política, apresentando um cenário ocupado por um único ator, o governo e suas ações, recitando-se um monólogo para um público idealizado, como se ele não conhecesse, em sua vida real, os conflitos de interesses entre as classes e entre as concepções do mundo.
Foi, então, possível transitar lisamente sobre a questão agrária brasileira sem que fossem declaradas e debatidas pelos candidatos as suas posições sobre a atual estrutura fundiária, fora as invectivas sarcásticas de Plínio. Hoje, às vésperas das eleições, nada se sabe sobre como cada qual se situa nesse mundo que abriga uma fronteira agrária viva no norte e no centro-oeste do país - excepcionalidade brasileira em pleno século XXI -, e um dos vetores por onde se amplia e aprofunda o moderno capitalismo no país em forte conexão com políticas do Estado.
A ausência desse tema se tornou ainda mais excruciante pelo fato de que boa parte das controvérsias de natureza ambiental, como é de conhecimento generalizado, gravita em torno do mundo agrário e das atividades econômicas nele existentes. Finda a campanha, os candidatos finalistas, Serra e Dilma, saem limpos dessa pesada e incontornável questão, sem que se saiba sequer - um exemplo escandaloso - qual a posição deles sobre a reforma do Código Florestal, ora em andamento no Legislativo federal.
Passou-se batido, igualmente, sobre o tema sindical, embora tanto o PT como o PSDB contem em sua história e práticas de governo - no caso do PT, lembre-se do projeto de reforma do ministério Berzoini, em 2005 - com iniciativas contrárias à vinculação dos sindicatos ao Estado. Mesmo destino teve a questão estratégica dos rumos da industrialização do país, mesmo em plena "guerra cambial", cujos desdobramentos podem vir a ameaçá-la, para não falar das abrasivas matérias previdenciárias e tributárias. E, a propósito, por que nenhuma palavra, nem contra ou a favor, sobre o capitalismo politicamente orientado que se insinua por aí?
Resultou da campanha um retrato chapado do país, bem nos moldes do governo Lula, que trouxe para o seu interior todas as classes e todos os interesses relevantes, por mais contraditórios que fossem entre si. Pode-se cogitar, diante das circunstâncias, de que outros caminhos não levariam a melhores resultados, porque, sabemos todos, não é fácil o acesso ao voto em uma sociedade desigual como a nossa.
Mas, Lula, agora, será apenas um retrato na parede, e o candidato vencedor, com o que vem por aí, inclusive porque, qualquer que seja ele, contará com uma oposição forte e aguerrida, vai precisar muito da ajuda dos céus, tão invocado nessas eleições.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras
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