segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A democracia agredida :: Paulo Brossard

DEU NO ZERO HORA (RS)

Eu era estudante em 1945 e participei da campanha pela redemocratização do país e votei na eleição de 2 de dezembro daquele ano para presidente da República e para a constituinte que elaboraria a Constituição de 18 de setembro de 1946.

Encerrava-se o longo e triste ciclo do Estado Novo, durante o qual houve de tudo, a começar pela destruição dos valores democráticos e pelo endeusamento do ditador, à semelhança do que se fizera nos países totalitários da Europa. E continuei a participar de campanhas e eleições até ser nomeado para o Ministério da Justiça e, posteriormente, para o Supremo Tribunal Federal. Sempre entendi que o ministro da Justiça não deveria ser parte da campanha, mais do que qualquer outro não podendo ser, ao mesmo tempo, autoridade e ator, pois a ele competiria a adoção de medidas que se fizessem necessárias no período eleitoral.

Digo isto para salientar que em mais de 40 anos fui testemunha de muito “excesso” e “abuso”, mas nunca tinha visto o que passei a ver e continuo a assistir dia a dia se agravando. E isto é tanto mais significativo quando em quase todos os sentidos o país tem progredido e em muitos deles o progresso chega a ser notável; no que tange à instrumentalidade eleitoral, por exemplo, é quase inacreditável o aperfeiçoamento, mas no momento em que o chefe do Estado se despe da faixa presidencial e assume a chefia real e formal da campanha de um candidato e em cerimônia oficial insulta o candidato, por sinal, da oposição, chamando-o de mentiroso, ele se despe da magistratura presidencial, inerente à Presidência, e ingressa no mundo da ilicitude, que, para um presidente, é a mais grave das infrações às suas indisponíveis responsabilidades.

De resto, isto é a porta aberta para a consumação de todas as truculências verbais e físicas. É preciso não esquecer que a violência é doença contagiosa, e com a publicidade que o governo dispõe ele pode incendiar o país. O presidente quer ganhar a eleição a qualquer custo e pode ganhar, mas a sua eleita pode não governar. Já vi coisa parecida e não terminou bem. O presidente alinhou o Brasil na maçaroca do coronel Chávez. A partir de agora alguém pode sair às ruas portando um cartaz, seja do que e de quem for, sem correr o risco de ser agredido pela guarda de choque do presidente. Foi assim na Itália fascista e na Alemanha nazista.

O que aconteceu ontem instantaneamente ganhou uma versão cor-de-rosa na publicidade do governo. O agredido de ontem não foi o cidadão apontado de “mentiroso” pelo presidente da República, foi cada um de nós, foram as instituições democráticas. Para começar um incêndio basta um fósforo, para extingui-lo pode custar o incalculável.

Não preciso dizer que estou profundamente impressionado com o rumo que o presidente está dando à sua incursão empreendida na orla da horda, ele fez um pacto com a fortuna, do qual o imprevisto é sempre possível.


Em Pelotas, sua cidade natal, morreu Mozart Victor Russomano. Foi lá que o conheci, em 1944, quando ultimava minha obrigação militar, fazendo o estágio regulamentar. Nunca esqueci a primeira de suas atenções para comigo. Escolhido orador de sua turma, quis revelar seu discurso a um reduzido número de amigos, Delfim Silveira, Anselmo Amaral e eu, reunindo-nos numa sala do Clube Comercial e nos antecipando sua admirável oração, cujas palavras iniciais ainda me lembro, “contam os escandinavos, na penumbra de uma saga...” e passava a narrar o martírio do herói Danko... que rasgando o peito e arrancando o coração liderou seu povo na conquista da independência. Cedo ingressou na magistratura trabalhista então incipiente e no magistério universitário, e não tardou a elaborar obras doutrinárias, que logo se tornariam clássicos. Ilustrou a presidência do TST e não demorou a laurear-se em todos os foros acadêmicos que passou a frequentar, aqui e no estrangeiro. Orador primoroso, possuía a nota própria para cada ambiente.

Lembrando um pássaro que canta para encantar, Mozart falava para embevecer os ouvintes com a fluência de sua palavra de cristal, o gesto medido, o porte harmonioso. A superioridade de seus talentos não humilhava a ninguém; era a cordialidade em pessoa, o trato amável, a polidez sem afetação. É com tristeza que risco estes traços para lembrar desordenadamente 66 anos de amizade e uma personalidade que enriqueceu seu tempo e sua terra.


Paulo Brossard* *Jurista, ministro aposentado do STF

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