DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS
Nas festas de fim de ano, o caos dos aeroportos e a violação dos escâneres transformam em desânimo a alegria das viagens
Na época em que começavam a ser instaladas as linhas de metrô em São Paulo, um jornal publicou matéria em que demonstrava que o tempo de deslocamento das pessoas, entre um ponto e outro na cidade, havia regredido à velocidade média do início do século 20, do tempo do transporte em lombo de burro. Menos de cem anos de progresso no transporte público haviam sido anulados pela lentidão do trânsito nas ruas.
Hoje a situação se repete em relação ao transporte aéreo: entre os congestionamentos para chegar ao aeroporto, as horas de antecipação obrigatória e as filas imensas para o check-in, a demora para o embarque e até os atrasos dos aviões, o tempo para ir de casa em São Paulo ao destino no Rio de Janeiro é praticamente o tempo da viagem de ônibus, se não for mais. Com a diferença de que o ônibus é bem mais confortável: nos aviões, a largura das poltronas é para quem passou em teste de concurso de beleza e a distância entre os joelhos e a poltrona da frente é para mutilados de guerra - o que lembra o fato histórico de que os escravos trazidos da África para o Brasil vinham em navios negreiros que tinham espaço interno para cada cativo rigidamente calculado para que neles coubesse o maior número de pessoas. Vinham encolhidos, a maior parte do tempo, os joelhos batendo no queixo. No desembarque, depois de muitas semanas de viagem naquela posição, tinham que ser estirados, desamassados, até que pudessem voltar a andar, muitos dias depois. Não estamos muito longe disso no transporte aéreo, mesmo nas viagens em classe turística para o exterior.
Nestes dias de proximidade das festas natalinas, das viagens de reencontro com a família e das viagens de repouso, a ansiedade sobrepõe-se à alegria que sempre cercou as viagens, mesmo as de avião. O caos já se anunciou nessa semana. Previsão de overbooking, mais passagens vendidas do que lugares disponíveis, filas, atrasos e uma companhia aérea cancelando voos porque tem aviões, mas não tem tripulantes. As viagens aéreas se tornaram mais baratas, mas muito mais incertas, a chegada ao destino muito mais demorada do que deveria ser próprio do transporte aéreo.
Em todo canto, no Brasil e fora, há notícias de grandes e problemáticas alterações na função própria do avião. Há alguns anos, num voo entre Brasília e Belém, vi-me de repente desembarcado em Santarém, numa manhã ensolarada. A tripulação havia entrado em greve. Somente cheguei ao destino 24 horas depois. Numa viagem entre Roma e Rio, vi-me embarcado num voo em que também era possível levar animais domésticos, cachorros e gatos, na própria cabina, em gaiolas. Antes mesmo da partida, começou uma briga entre um cachorro e um gato que redundou na briga entre as donas dos animais. Foi preciso separá-las e colocá-las em lugares diferentes. Quando amanheceu, o fedor era de tal ordem que poucos conseguiram tomar o café da manhã. Aquilo era um vagão de transporte de gado.
Sem contar a alimentação, mesmo em voos longos. No café da manhã de um voo nacional noturno foi-me servido um pedaço de pizza amanhecida. Não é raro que sofrível sanduíche seja o almoço ou o jantar em voos demorados. Famosa companhia europeia, que vende passagens internacionais a US$ 10, está estudando um meio de transportar, também, passageiros em pé!
Mas o pior está apenas começando. Nos Estados Unidos, e também na Europa, centenas de escâneres de corpo completo já estão sendo utilizados nos aeroportos. As imagens divulgadas mostram a plena nudez das pessoas. A conversão dos negativos pode produzir imagens fotográficas detalhadas de corpo inteiro dos escaneados, abrangendo detalhes genitais e o uso de próteses.
As pessoas podem ser reconhecidas e nada assegura que não haverá vazamento de imagens para fins outros que não sejam os da segurança nos voos. Apesar dos protestos, o assédio visual prossegue. Homens, mulheres, crianças, adolescentes, religiosos e religiosas de diferentes credos, todos estão expostos ao voyeurismo oficial e policial. Um dos argumentos para a adoção de medidas mais drásticas de policiamento visual é a notícia divulgada há alguns meses, pelas autoridades francesas de que a Al-Qaeda teria desenvolvido um supositório-bomba, que pode ser acionado por telefone celular.
Em resposta à invasão visual da intimidade dos passageiros, uma empresa americana está oferecendo lingerie de fina camada de metal, em forma de folha de parreira, que supostamente protegeria as partes íntimas dos escaneados. Um retorno pós-moderno aos tempos de Adão e Eva.
Estamos em face de ameaças profundas a valores sociais relativos à intimidade e ao corpo, tanto de homens quanto de mulheres. As diferentes modalidades de tabu do corpo estão ameaçadas em face desse verdadeiro estupro visual. E a ameaça vem dos dois lados da guerra. Esses tabus constituem os pilares do que é a própria concepção da condição humana. Depois de passar pelo escâner, essa sociedade já não será a mesma. Talvez não seja nem mesmo sociedade.
José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de a Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
Nas festas de fim de ano, o caos dos aeroportos e a violação dos escâneres transformam em desânimo a alegria das viagens
Na época em que começavam a ser instaladas as linhas de metrô em São Paulo, um jornal publicou matéria em que demonstrava que o tempo de deslocamento das pessoas, entre um ponto e outro na cidade, havia regredido à velocidade média do início do século 20, do tempo do transporte em lombo de burro. Menos de cem anos de progresso no transporte público haviam sido anulados pela lentidão do trânsito nas ruas.
Hoje a situação se repete em relação ao transporte aéreo: entre os congestionamentos para chegar ao aeroporto, as horas de antecipação obrigatória e as filas imensas para o check-in, a demora para o embarque e até os atrasos dos aviões, o tempo para ir de casa em São Paulo ao destino no Rio de Janeiro é praticamente o tempo da viagem de ônibus, se não for mais. Com a diferença de que o ônibus é bem mais confortável: nos aviões, a largura das poltronas é para quem passou em teste de concurso de beleza e a distância entre os joelhos e a poltrona da frente é para mutilados de guerra - o que lembra o fato histórico de que os escravos trazidos da África para o Brasil vinham em navios negreiros que tinham espaço interno para cada cativo rigidamente calculado para que neles coubesse o maior número de pessoas. Vinham encolhidos, a maior parte do tempo, os joelhos batendo no queixo. No desembarque, depois de muitas semanas de viagem naquela posição, tinham que ser estirados, desamassados, até que pudessem voltar a andar, muitos dias depois. Não estamos muito longe disso no transporte aéreo, mesmo nas viagens em classe turística para o exterior.
Nestes dias de proximidade das festas natalinas, das viagens de reencontro com a família e das viagens de repouso, a ansiedade sobrepõe-se à alegria que sempre cercou as viagens, mesmo as de avião. O caos já se anunciou nessa semana. Previsão de overbooking, mais passagens vendidas do que lugares disponíveis, filas, atrasos e uma companhia aérea cancelando voos porque tem aviões, mas não tem tripulantes. As viagens aéreas se tornaram mais baratas, mas muito mais incertas, a chegada ao destino muito mais demorada do que deveria ser próprio do transporte aéreo.
Em todo canto, no Brasil e fora, há notícias de grandes e problemáticas alterações na função própria do avião. Há alguns anos, num voo entre Brasília e Belém, vi-me de repente desembarcado em Santarém, numa manhã ensolarada. A tripulação havia entrado em greve. Somente cheguei ao destino 24 horas depois. Numa viagem entre Roma e Rio, vi-me embarcado num voo em que também era possível levar animais domésticos, cachorros e gatos, na própria cabina, em gaiolas. Antes mesmo da partida, começou uma briga entre um cachorro e um gato que redundou na briga entre as donas dos animais. Foi preciso separá-las e colocá-las em lugares diferentes. Quando amanheceu, o fedor era de tal ordem que poucos conseguiram tomar o café da manhã. Aquilo era um vagão de transporte de gado.
Sem contar a alimentação, mesmo em voos longos. No café da manhã de um voo nacional noturno foi-me servido um pedaço de pizza amanhecida. Não é raro que sofrível sanduíche seja o almoço ou o jantar em voos demorados. Famosa companhia europeia, que vende passagens internacionais a US$ 10, está estudando um meio de transportar, também, passageiros em pé!
Mas o pior está apenas começando. Nos Estados Unidos, e também na Europa, centenas de escâneres de corpo completo já estão sendo utilizados nos aeroportos. As imagens divulgadas mostram a plena nudez das pessoas. A conversão dos negativos pode produzir imagens fotográficas detalhadas de corpo inteiro dos escaneados, abrangendo detalhes genitais e o uso de próteses.
As pessoas podem ser reconhecidas e nada assegura que não haverá vazamento de imagens para fins outros que não sejam os da segurança nos voos. Apesar dos protestos, o assédio visual prossegue. Homens, mulheres, crianças, adolescentes, religiosos e religiosas de diferentes credos, todos estão expostos ao voyeurismo oficial e policial. Um dos argumentos para a adoção de medidas mais drásticas de policiamento visual é a notícia divulgada há alguns meses, pelas autoridades francesas de que a Al-Qaeda teria desenvolvido um supositório-bomba, que pode ser acionado por telefone celular.
Em resposta à invasão visual da intimidade dos passageiros, uma empresa americana está oferecendo lingerie de fina camada de metal, em forma de folha de parreira, que supostamente protegeria as partes íntimas dos escaneados. Um retorno pós-moderno aos tempos de Adão e Eva.
Estamos em face de ameaças profundas a valores sociais relativos à intimidade e ao corpo, tanto de homens quanto de mulheres. As diferentes modalidades de tabu do corpo estão ameaçadas em face desse verdadeiro estupro visual. E a ameaça vem dos dois lados da guerra. Esses tabus constituem os pilares do que é a própria concepção da condição humana. Depois de passar pelo escâner, essa sociedade já não será a mesma. Talvez não seja nem mesmo sociedade.
José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de a Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
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