Giorgio Baratta. Leonardo entre nós. Imagens, sons e palavras na época intermidiática. Brasília/ Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira & Contraponto, 2011. 212p.
Leonardo da Vinci penetrou em nossa era midiática com avassaladora presença e circula visível e lampeiro em toda parte, com suas barbas venerandas estampadas até nas notas do euro, e não escapou sequer do mundo do rock n´ roll iconizado em camisetas e outros apetrechos do pop. O deslumbramento diante dos seus quadros, como a Mona Lisa e a Santa Ceia, faz a festa nos museus; e tais quadros, juntamente com a figura do seu Homem Vitruviano, têm sido largamente parodiados sem jamais esgotarem o seu mistério e perene beleza. A sua legenda vem de longe e inclui a amplitude do espectro de interesses que moviam a sua atividade artística, intelectual e científica, o que fez dele uma fonte permanente e inspiração variada de estudos, sobretudo, e obviamente, nos círculos acadêmicos.
Nada disso, entretanto, afetou a opção feita pelo saudoso gramsciano Giorgio Baratta (1938-2010) e de quem agora se lança no Brasil este Leonardo entre nós, uma súmula das pesquisas que há algum tempo ele e o seu grupo italiano de Urbino desenvolveram em torno de da Vinci, com a adesão, entre outros, de Ernst Gombrich e Eric J. Hobsbawn. O foco epistemológico se concentra na obra escrita do gênio italiano que, embora de pequenas dimensões, concentra denso e estimulante pensar, mesmo considerando-se o tempo decorrido e os condicionamentos históricos. A matéria-prima deste importante ensaio são os cadernos de anotações e o Tratado da Pintura, aqui chamado de Livro de Pintura. O pensamento davinciano está por inteiro ali e, revisitado e de novo interpretado, se nos afigura surpreendente, repleto que está de conceitos e percepções muito além das cogitações de sua época, dando a impressão de ter como endereço certo a nossa contemporaneidade, tal a sua originalidade e alcance. Às vezes, o seu pensamento bordejava certa bizarria ao combinar ideias e categorias que tiveram voga no período medieval com incríveis “sacadas” que não encontraram abrigo nos cânones do Renascimento. Pior para os cânones e para os donos da verdade.
A universalidade de seu pensamento, entretanto, torna-se agora mais clara através de uma maneira muito peculiar de abordagem, se revelando quase sempre dicotômica, como dicotômica foi a sua personalidade psíquica, objeto de texto paradigmático, verdadeiro “de profundis” de Sigmund Freud sobre um sonho de Leonardo.
Dialético à moda dos pré-socráticos, podendo ser aparentado num primeiro instante a Empédocles, da Vinci manifesta, porém, uma verdadeira idiossincrasia quanto ao mero dualismo metafísico, rechaçando resolutamente a separação radical entre substâncias ou “princípios universais”, o que faz coincidir seu ponto de vista com a moderna divisão do saber.
Mas o que sustenta a pertinência deste importante estudo é, mais uma vez, a atualidade de da Vinci, em particular o do pensamento escrito, tal como se encontra no Livro de Pintura e nos já citados “cadernos”. Aqui se ressalta uma afinidade sintomática, mas não de todo passageira, com o sempre fecundo Antonio Gramsci, afinidade mais de forma do que de fundo, mais pelo cosmopolitismo de certas posições de ambos e em especial pelo que tange, por exemplo, à chamada “continuidade de todos os fenômenos”. Parte-se aqui das questões levantadas por da Vinci quando procede às comparações da pintura com as outras artes. É esta universalidade de um espírito inquieto que levou Kenneth Clark a uma afirmação conhecida, a de que “toda geração reinterpreta Leonardo”. Não à toa recorre-se nessa instância ao cineasta Serguei Eisenstein, quando ensinava a seus alunos em Moscou sobre a curiosa antecipação da montagem cinematográfica, com som e tudo, já latente nos escritos do mestre italiano, e citava empolgado a descrição que da Vinci fazia do Dilúvio como “folhas para uma montagem audiovisual”.
Partindo da “unificação comparativa” entre línguas e linguagens, povos e culturas, como queria Leonardo, algo parece contemplar aspirações de hoje, a que não era indiferente o “programa universal” gramsciano, num diapasão que nos lembra também a “metodologia polifônica” propugnada por Bakhtin. São caminhos para uma práxis que bem poderia nos levar a uma nova ordem mundial, livre das mutilações e dos perigos de uma famigerada globalização.
Assim como o doce, mas ambíguo, sorriso da Gioconda nos remete sutil ao princípio da contradição que rege todas as coisas, este livro parece nos aliciar, num recuo no tempo, para uma atitude de maior conhecimento do pensamento davinciano, que mesmo diante das restrições de sua época nos propôs questões de máxima complexidade, antecipando-se ao mundo e à modernidade de hoje.
Vladimir Carvalho é cineasta.
FONTE: GRAMSCI E O BRASIL
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