Já existe, felizmente, em nosso país, uma consciência nacional – em formação, é certo – que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para a qual a escravidão, apesar de hereditária, é uma verdadeira mancha de Caim, que o Brasil traz na fronte. Essa consciência, que está temperando a nossa alma, e há de por fim humanizá-la, resulta da mistura de duas correntes diversas: o arrependimento dos descendentes de senhores, e a afinidade de sofrimento dos herdeiros de escravos.
Não tenho, por tanto, medo de que o presente volume não encontre o acolhimento que eu es pero por par te de um número bastante considerável de compatriotas meus, a saber: os que sentem a dor do escravo como se fora própria, e ainda mais, como par te de uma dor maior – a do Brasil, ultrajado e humilhado; os que têm a altivez de pensar – e a coragem de aceitar as conseqüências desse pensamento – que a pátria, como a mãe, quando não existe para os filhos mais infelizes, não existe para os mais dignos; aqueles para quem a escravidão, de gradação sistemática da natureza humana por interesses mercenários e egoístas, se não é in famante para o homem educado e feliz que a inflige, não pode sê-lo para o ente desfigurado e oprimido que a sofre; por fim, os que conhecem as influências sobre o nosso país daquela instituição no passado, e, no presente, o seu custo ruinoso, e prevêem os efeitos da sua continuação indefinida.
Possa ser bem aceita por eles esta lembrança de um correligionário ausente, mandada do exterior, donde se ama ainda mais a pátria do que no próprio país – pela contingência de não tornar a vê-la, pelo trabalho constante da imaginação, e pela saudade que Garrett nunca teria pinta do ao vivo se não tivesse sentido a nostalgia – e onde o patriotismo, por isso mesmo que o Brasil é visto como um todo no qual homens e partidos, amigos e adversários se confundem na superfície alumiada pelo sol dos trópicos, parece mais largo, generoso e tolerante.
Quanto a mim, julgar-me-ei mais do que recompensado, se as sementes de liberdade, direito e justiça, que estas páginas contêm, derem uma boa colheita no solo ainda virgem da nova ge ração; e se este livro concorrer, unindo em uma só legião os abolicionistas brasileiros, para
apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em que vejamos a Independência completada pela abolição, e o Brasil elevado à dignidade de país livre, como o foi em 1822 à de nação soberana, perante a América e o mundo.
Londres, 8 de abril de 1883
Joaquim Nabuco. O abolicionismo – prefácio. Pag. 1-2. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999.
Nenhum comentário:
Postar um comentário