Uma simples consulta aos jornais e revistas sobre a atividade política nos governos Fernando Henrique Cardoso mostraria uma série de iniciativas do então principal partido oposicionista em prol de CPIs contra a corrupção, acompanhadas não raramente de performances midiáticas, como a distribuição de pizzas ou o imaginoso varal da corrupção, em 2001. Esse varal, estendido em salão da Câmara dos Deputados, com "45" acusações contra a situação, era contundente: nele nada deixava de ser dependurado, da possível compra de votos para a malfadada emenda da reeleição aos diferentes processos de privatização, alguns dos quais conduzidos, ao que se dizia, na fronteira da ilegalidade.
Uma ação oposicionista legítima, sem dúvida, ainda que não poucas vezes se fizesse acompanhar de palavras de ordem equívocas, como o "fora FHC" apregoado por destacados petistas. O lema trazia em si, sem muita dissimulação, uma certa incapacidade de conferir legitimidade ao adversário, legitimidade sem a qual o jogo democrático simplesmente deixa de ser possível e o adversário passa à condição de "inimigo do povo".
Como é próprio das situações de alternância, hoje os governos petistas se veem sob fogo cerrado, de sorte que, como resultado das denúncias cruzadas, um extenso varal metafórico parece deixar ao vento "as roupas comuns dependuradas" de petistas, tucanos e agregados, a começar pelas vestes do publicitário Marcos Valério. Por ora, a fragilidade parlamentar oposicionista - agravada pelo fato de que o governismo continua a ser um universo em expansão, como o atesta a criação do PSD - encontra-se, de modo ainda incipiente, compensada pelo fenômeno das redes sociais, cuja capacidade de mobilização, à revelia das direções partidárias, não convém subestimar, e, antes, encontra-se na raiz de processos democratizadores (de enriquecimento da agenda democrática tradicional) em todo o mundo.
O governo defende-se, como é natural. A própria presidente Dilma Rousseff hesita entre apropriar-se, inclusive em termos de marketing, do emblema da faxina, ou relegá-lo a um plano secundário, sublinhando em seu lugar temas "substantivos", e não "moralistas" ou "udenistas". Na agenda presidencial ressaltariam, então, questões de inegável peso, como a eliminação dos bolsões de miséria absoluta, a inserção da economia numa ordem mundial que se altera de modo inaudito e nos parece condenar a uma condição periférica renovada, ou, ainda, o impacto interno de uma crise global continuada que não dá sinais de resolução.
A qualidade do argumento governista é que sempre pode ser discutida, tanto antes como agora. De fato, não está errada a presidente Dilma ao entender que a ação de governo não pode girar estrategicamente em torno do combate à corrupção. Numa das suas intervenções, aliás, a presidente chegou a definir tal combate como "ossos do ofício". Uma posição de respeito, em especial porque acompanhada de medidas saneadoras em pontos tradicionalmente nevrálgicos da administração, como o Ministério dos Transportes, com relevância para alguns dos objetivos mais proclamados da ação de governo na área de infraestrutura.
Menos claras são as declarações de que o petismo no poder se encontra prisioneiro de uma lógica que não comanda, derivada das perversidades de uma transição pelo alto - de uma "transação" entre elites - e da consequente restauração do presidencialismo de coalizão e seu cortejo de mazelas. E a clareza se perde de vez quando declarações partidárias apontam para o golpismo das oposições, as quais, como em situações pretéritas, utilizariam instrumentalmente o discurso do "mar de lama" ou o combate hipócrita contra a corrupção, que, ao lado daquele contra a "subversão", compôs o ideário dos donos do poder nos idos de 1964.
Na verdade, a não ser por anacronismo, este não é mais o tempo de repudiar a transição democrática, que permitiu, sem maiores sobressaltos, a inédita experiência de um partido de esquerda no poder, capitaneando, ao menos desde os turvos episódios de 2005, uma extensa coalizão de governo, segundo a tradição estabelecida em 1945 e só quebrada no regime militar.
Por sua vez, o presidencialismo de coalizão - para usar expressão incontornável - permitiria, em princípio, alianças efetivamente programáticas e mudancistas, especialmente se a esquerda hegemônica valorizasse, em primeiríssimo lugar, a institucionalidade democrática estabelecida a partir de 1988, sem entrar em choque, por exemplo, como nos mandatos do presidente Lula, com mecanismos clássicos de controle, entre os quais imprensa e tribunais de contas.
Nesse mesmo sentido, e para nos atermos ao presente, em nenhum momento a figura presidencial poderia ser ou parecer interina ou tutelada, sob pena de uma diminuição simbólica do cargo de consequências imprevisíveis. Em outra instância, não se poderia permitir o ocorrido nos seis meses iniciais do governo Dilma, quando a pauta do Congresso Nacional esteve submetida ao Executivo pela sucessão de medidas provisórias ou projetos em regime de urgência nem sempre justificável. Uma situação que constrange um dos Poderes-chave da República e faz dos próprios parlamentares da base aliada agenciadores subalternos de verbas e cargos, além de afastá-los das duras tarefas da representação.
Num quadro de consciente fortalecimento das instituições, as denúncias de corrupção certamente perderiam o caráter instrumental. Um instrumentalismo que rebaixa a ação política e transforma tucanos e petistas, querendo ou não, naquilo que um espírito sardônico, e dado a arcaísmos, chamaria de versões modernizadas de "luzias" e "saquaremas", mais semelhantes do que gostariam de ser tanto nas funções de governo quanto nas de oposição, que alternadamente têm cumprido.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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