O “affaire” Paraguai nasceu e vicejou no país mais atrasado da América do Sul, num mediterrâneo como seus habitantes modestamente se apresentam. Vejamos a evolução da novela. Primeiramente, aconteceu num país manietado por uma ditadura de décadas – a de Stroessener e seu partido, o colorado. Nas relações internacionais, depois de um infausto conflito com a Bolívia, na guerra do Chaco, tornou-se fiel amigo da Argentina, devido aos migrantes portenhos que subiam o caudaloso rio. Mais recentemente, ligou-se ao Brasil, que o inundou com centenas de agricultores e um acordo em torno de Itaipu, numa binacional que nos fornece energia e proveitos para o sócio.
Com a derrota dos seguidores de Stroessener, Fernando Lugo assumiu o palácio presidencial sem aglutinar apoio político consistente. Sacudido pela controvérsia ideológica e política que balança todo o globo, o governo de Assunção resolveu enfrentar desafios internos, inclusive a estrutura fundiária com poucos proprietários dominando terras férteis no interfluxo dos formadores do Prata.
Deu cobertura à luta dos “sem terra”, seguindo o modelo do MST brasileiro. Porém, no Paraguai essa questão possui uma característica particular, porque uma boa parcela dos “latifundiários” são produtores brasileiros que conseguiram aquelas terras de forma legal ou por “grilo” (uma questão em aberto).
Com isso, quando foi desmoronando o apoio a Lugo pelas forças tradicionais paraguaias (colorados e “blancos”), sobreveio o pedido de “impeachment” do presidente. O resultado foi uma derrota acachapante de Lugo na Câmara dos Deputados e no Senado, endossada por um pronunciamento da Corte Constitucional. Assim, a deposição de Lugo não violou a legislação do Paraguai.
Como o povo paraguaio reagiu diante dessa crise? O país não foi sacudido por movimentos populares de protesto e não houve nenhuma insubordinação dos militares. A resposta de Lugo, inicialmente, foi uma aceitação tácita de sua derrocada. E dele não se ouviu denúncia veemente desse “impeachment” e nenhum chamamento à resistência de seus patrícios.
No entanto, surgiu no exterior um movimento de apoio ao ex-bispo, promovido por forças na Venezuela, na Argentina, no Brasil e outros países sul-americanos, estimulando um repúdio ao chamado “golpe de Estado”, que acarretaria uma violação do regime democrático hoje defendido por acordos assinados pelos países da América do Sul. Para tanto, apresenta-se como argumento a rapidez em que votado na Câmara dos Deputados e no Senado o pedido de “impeachment”, o que teria impossibilitado a defesa de Lugo.
A improcedência de que teria havido no Paraguai um golpe de Estado é ressaltada por um dos mais conceituados juristas da USP – o professor Celso Lafer, ex-ministro das Relações Internacionais do Brasil - ao afirmar que a medida aprovada pelo Congresso do país vizinho foi adotada seguindo os preceitos de sua Constituição.
Os que afirmam ter acontecido um golpe de Estado apresentam como justificativa a inconstitucionalidade da medida contra Lugo. Na verdade, essa análise do “afaire” procura encobrir divergências que se aguçaram nos países situados na parte meridional do Novo Mundo.
Essa pressão internacional tem raízes curiosas. Para Chávez seu apoio enfático ao ex-bispo, derivou do fato de pretender eliminar a resistência do Paraguai à participação da Venezuela no MERCOSUL. A posição da Argentina deriva de contradições internas do embate direto de sua presidente com a oposição em seu país.
No Brasil, de saída houve cautela, porém, depois, Dilma Rousseff resolveu encampar a tese de que no país vizinho aconteceu um golpe de Estado. Com isso, para ela ali teria ocorrido a violação do princípio que assegura o regime democrático nos países da América do Sul. Tudo isso porque o lulismo estimula posições internacionais, que, usando a bandeira dos interesses populares e da luta contra o imperialismo, articula a superação dos regimes democráticos, com o total desrespeito aos direitos civis e políticos, notadamente a liberdade de imprensa.
Ademais, é patente o esforço de Lula em ajudar Chávez a sair de suas dificuldades resultantes de graves erros na economia venezuelana. Não foi Lula o patrono de um acordo da Petrobrás com o governo de Caracas a fim de participar na construção de uma refinaria em Pernambuco, acordo que tem dado sérios prejuízos à estatal brasileira em razão do não cumprimento dos compromissos da Venezuela?
Para espanto geral a controvérsia com o Paraguai evoluiu consideravelmente chegando-se ao ponto de medidas serem tomadas pelas autoridades do Brasil, da Argentina e do Uruguai contra o governo paraguaio, sem ouvir suas razões, suspendendo sua participação nas reuniões e decisões do MERCOSUL. E estabelecendo que tais medidas punitivas somente serão suspensas depois das eleições presidenciais no país vizinho.
Uma das razões dessa interferência nas questões internas do Paraguai foi comprovada pelo imediato estabelecimento da participação da Venezuela no MERCOSUL, sem a concordância de um dos membros do bloco.
Até agora o saldo é lamentável para o governo de Brasília. Do ponto de vista diplomático houve uma violação de tradicionais princípios proclamados pelo Itamaraty. Com toda razão afirmou Álvaro Dias, historiador e líder do PSDB no Senado, que o governo brasileiro fez coro ao equívoco de impor sanções à nação vizinha, numa postura que “atenta contra nossa Lei Maior, que preceitua que o Brasil rege suas relações internacionais pelos princípios, entre outros, da não intervenção e da autodeterminação dos povos”. (“Folha de São Paulo”, 30/6/12)
Agora como a presidente Dilma Rousseff e o Itamaraty vão sair desse imbróglio? Quando se esforçam para o Brasil ser admitido como membro do Conselho de Segurança da ONU, perderam uma boa oportunidade para nosso país se prestigiar na política internacional, porque interferiu claramente em assuntos domésticos de outro país.
Ademais, agravou uma profunda crise no MERCOSUL pois o Paraguai dificilmente se curvará diante da intervenção de governos estrangeiros em seus problemas nacionais. E Rousseff assumiu um relacionamento difícil com o povo do Paraguai, que não esquece os sofrimentos na guerra contra a Tríplice Aliança, enfrentando o Brasil, a Argentina e o Uruguai. A maioria dos paraguaios recorda que naquele lamentável conflito houve a perda de 75% da população masculina do Paraguai e 40% de seu território.
São Paulo, julho de 2012
Marco Antônio Tavares Coelho, ex-deputado federal do antigo PCB, escreveu, entre outros livros, A herança de um sonho.
Fonte: Política democrática & Gramsci e o Brasil
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