Joseph Ratzinger, momentos antes que a lucidez lhe faltasse e a senilidade lhe tirasse o discernimento e a lembrança das decisões e hesitações pretéritas, fez-se herói. Em uma era como a de peixes, em que papas perecem em seus cargos até se tornarem marionetes na mão de conclaves — o próprio Ratzinger já contribuíra inúmeras vezes para esta farsa periódica do Vaticano –, renunciar ao pontifício adquire um sentido próprio, um repente da vontade humana (o papa pulou fora), dotado de enorme demonstração de liberdade e desprendimento (e não importam as razões).
Intelectual, Ratzinger foi um dos ideólogos da renovação conservadora que permitiu que o catolicismo europeu derrotasse as idéias pretensamente libertárias do Concilio Vaticano II (1962), e os papados tecnicamente progressistas de Paulo VI e João XXIII. Esteve próximo ou dentro do Vaticano desde a década de setenta, quando o “desmanche” começou. No lugar da “vocação preferencial pelos pobres”, tão cara a sociologia da América Latina que a inteligência do catolicismo produzia no continente, emergia uma concepção comedida, e bem menos intervencionista do papel da igreja na vida social e da Santa Sé na construção da política e moralidade dos países onde vivem os fieis. Até a morte de João Paulo II, esta subtração da estrutura eclesiástica da vida dos fieis, menos ajuda e menos intervenção moral, dominou a agenda teológica do Vaticano, e quando Ratzinger assumiu, sabia desde sempre que seu papado seria um momento de transição para a igreja, que precisaria necessariamente fazer um aggiornamento para fazer frente ao crescimento da cultura laica na Europa e das denominações neopentecostais na América Latina.
Lúcido, Benedictus XVI — Bento, Benedito, tanto faz — reclama em sua carta de renuncia que suas “forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino.” Mais do que uma declaração com candura de falência da razão, as palavras de Bento XVI expressam uma percepção revigorada de que a demanda por uma renovação da fé católica chegou ao bispo de Roma e nele ecoou. A idade, marco pétreo do lugar de cada ser humano na matemática complexa das transformações geracionais, apresenta-se como causa suficiente para a subtração de idoneidade para exercer o ministério de maneira adequada. Há material para reflexão na escolha destes dois termos. Mas não quero perder o foco desta reflexão.
“no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado.”
Este é o trecho da carta mais pleno de sentido histórico, o momento cândido deste gesto de renuncia ao ministério. O mundo é o de hoje, diferente, de mudanças rápidas, agitado, cheio de questões de grande relevância para o Vaticano. A barca a ser governada exige além de fé, devoção, obras e palavras, vigor, muito vigor da alma e do corpo. Do corpo. A fragilidade do corpo de Cristo, inscrito em sua humanidade e reinscrito da finitude da vida de cada portador do cetro de Pedro, enfrentada de uma perspectiva humanista, pragmática.
Vigor, atributo exclusivo da juventude, em cuja ausência a jovialidade pode ocasionalmente iludir. Vigor da alma, cuja melhor descrição ainda seja a virtú do Principe descrito por Maquiavel, e vigor do corpo, diante da qual a religião, nos dias de hoje, se curva diante a medicina e busca, pragmaticamente, a justa medida e hora de parar.
A hora de parar. O gesto quase singelo deste papa é uma afirmação contundente do caminho que a Santa Sé trilhará nas próximas décadas: é um caminho de reaproximação com os jovens e de juvenilização do clero. Sofrimento, devoção, obras e palavras guardarão seu sacro lugar na hierarquia das virtudes cristãs. Mas será o vigor, acima de tudo o vigor, a virtude que a igreja de Roma precisará mobilizar nesta nova fase. A hora é de “reconhecer incapacidade” e reorganizar a nova geração para a missão aristotélica de “administrar bem” o legado de Cristo.
A era de Peixes conheceu disputas sangrentas pelo papado e papas que definharam em sua função. Oficialmente somente quatro papas renunciaram, sendo que o último papa a fazê-lo foi Gregório XII em 1415, quando a Renascença e o Humanismo já fertilizavam uma trajetória de crise e reconstrução da Igreja Católica. Dois séculos e meio depois, um concilio em Trento mudaria para sempre a história do Cristianismo.
Para resistir à Reforma, Roma fez uma revolução. A renuncia do papa Benedictus XVI pode ser o prenuncio de uma nova revolução. O neopentecostalismo e a ciência contemporânea já se mostraram adversários difíceis. Será preciso muita virtú, digo, vigor, para levar este novo empreendimento adiante. Talvez ele tenha que esperar pela era de Aquário. Talvez não. Bento certamente quer precipitar os eventos.
Fonte: Pittacos - Revista de Cultura e Humanidades
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