As circunstâncias que cercaram a eleição e a posse de Renan Calheiros na presidência do Senado e de Henrique Eduardo Alves na da Câmara e a eventual diferença entre o que este disse a seus pares e depois aparentemente, e só aparentemente, contradisse à imprensa à saída do Supremo Tribunal Federal (STF) exibem cartas escondidas nas mangas dos poderosos da República. E a verdade que não quer calar se impõe: os políticos, especialmente os detentores de mandatos parlamentares, não abrem mão de uma prerrogativa que acham inerente à própria condição no Estado Democrático de Direito à brasileira - a de estarem acima da lei que eles mesmos aprovam e serem mais iguais do que os outros cidadãos perante a dita-cuja.
Desde a promulgação da Constituição de 1988 foi-se adotando a regra consuetudinária e nunca explicitada de que os políticos profissionais se arrogam o direito de gozar privilégios negados ao zé-ninguém do populacho. Até o histórico julgamento pelo STF do escândalo do mensalão, o grupo que se assenhoreou do poder sob as barbas do profeta Lulinha Paz e Amor deixou claro que se sentia no direito consagrado por Deus e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) de praticar um crime contábil, o caixa 2, pelo simples fato de que os adversários também o cometiam impunemente. Era algo similar à declaração de inocência de um assassino confesso sob o argumento de que desde o fratricida bíblico Caim inúmeros homicidas não foram punidos pelo delito.
Não são lanas caprinas a obviedade de que o apelo ao crime menor era um jeitinho à brasileira para gozar a prescrição num costume ancestral de processos prolongados por infinitas apelações de plena defesa. No entanto, no julgamento, alguns ministros do STF, com destaque para Cármen Lúcia, não deixaram de reclamar do acinte cínico de quem apelava para o falacioso caixa 2 e declarar que crime é crime e não pode ficar sem punição. No mensalão, o Judiciário acabou por jogar no lixo a pretensão estapafúrdia dos políticos da licença para delinquir.
Ao longo da mais desastrada gestão na presidência da Câmara dos Deputados da História, Marco Maia (PT-RS) fez coro às reclamações dos mandatários mensaleiros condenados contra a "indevida" interferência do Supremo na decisão de cassar, ou não, seus mandatos, cabendo a decisão, a seu ver, aos colegas. A ideia de que o Parlamento é um clube fechado em que os sócios se reservam o direito de dar bolas brancas, vermelhas ou pretas a sócios forçados a deixar seu convívio por condenações judiciais dá bem uma ideia da democracia extravagante que nossos representantes no Congresso têm do exercício dessa representação. Teria Henriquinho a avalizado ao reivindicar a "última palavra" no caso?
Sim e não. De fato, como lembrou com clarividência o ministro do STF Gilmar Mendes, o Supremo é que condena e cassa, cabendo à Câmara providenciar o afastamento dos membros condenados, et pour cause, impedidos de exercer mandato de representação popular. Então, o novo presidente não mentiu aos pares ao lhes atribuir a "última palavra" nem ao presidente do Supremo e relator do mensalão, Joaquim Barbosa, ao negar qualquer tentativa de não dar provimento à decisão judicial em última instância, quando ela for tomada (ainda falta julgar recursos). Com o devido respeito, seria o caso de usar aqui o estratagema do marido que diz ter sempre a última palavra em casa. E ela é: "Sim, senhora". A eventualidade do atrito entre Poderes resultou de açodamento de quem a noticiou.
Henriquinho não desafiou a Justiça, mas os colegas que o elegeram, como os que sufragaram Renan Calheiros no Senado, passaram um recado mais preocupante à Nação: o de que se dispõem a usar os mandatos de representação como se fossem cartas brancas, sem dar a mínima para eventuais queixas da sociedade por suas escolhas. As denúncias contra ambos contrastadas com as margens da vitória afastam dúvidas quanto a isso.
Renan deu-se ao luxo de apresentar a candidatura à undécima hora e Henriquinho se fez de vítima, ajudado pelo surgimento de um dossiê anônimo reunindo acusações que todos os votantes já conheciam, porque foram tiradas do noticiário impresso dos dias anteriores. Tal noticiário expõe a hipocrisia do Poder Executivo, que ao longo do processo de escolha dos dignitários fez prosperarem indícios de que preferia candidatos de currículo menos polêmico na linha sucessória da presidente da República. Talvez seja mais fácil acreditar que o PT blefa no pôquer do poder com duas cartas: ou aproveita as denúncias para enfraquecer os interlocutores na presidência das duas Casas do Congresso ou espera que as denúncias os arranquem das cadeiras. Nesta hipótese, dois companheiros ascenderiam aos postos: André Vargas (PT-PR), da tropa de choque de José Dirceu, e Jorge Vianna (PT-AC), irmão de Tião, que há cinco anos ascendeu ao posto de Renan, vergado este ao peso do "denunciômetro".
Papel ainda mais hipócrita - e no caso, ridículo - foi feito pelos opositores. O senador Aécio Neves (PSDB-MG), tido e havido como a bola de vez da oposição para evitar a reeleição de Dilma Rousseff, rompeu sua longa ausência da tribuna para fazer um apelo aos correligionários tucanos para que não optassem por Renan. Ou discursou para os anais sem contar com as consequências de suas palavras vazias, sendo sonso, ou, de tão ausente na obrigação de liderar o dissenso na Casa, ninguém lhe deu atenção alguma, fazendo ele as vezes de bobo da Corte.
Com Dilma dando prioridade à reeleição sobre a gestão e a oposição fingindo se fingir de morta para evitar que se perceba que já morreu e se esqueceram de enterrá-la, segue o País à deriva. Resta à cidadania confiar em que mais uma vez o único Poder que não escolhe, o Judiciário, consiga impor-se sobre as tentativas que na certa o Legislativo fará para adiar o quanto for possível a inevitável cassação dos quatro congressistas condenados por corrupção e formação de quadrilha.
* José Neumanne é jornalista, poeta e escritor.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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