quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Defensor da fé e da reforma, Bento XVI é contra ruptura

Teólogo progressista, Ratzinger é tachado de conservador pelos adversários

Marcelo Godoy e Alexandre Gonçalves

O Papa Bento XVI pouco mudou a Igreja. Ele quis renová-la sem romper com o passado. A busca de respostas para o catolicismo diante dos desafios da modernidade e da secularização marcam sua vida. Ratzinger é considerado um homem profundamente ligado ao seu tempo.

E se pode dizer que esse tempo foi inaugurado em 1900 por uma autora marxista: Rosa Luxemburgo. Ao escrever Reforma ou Revolução, a teórica polonesa anunciou o conflito que marcaria o século 20 e a vida do futuro papa. Bento XVI escolheu o lado da reforma, de uma mudança que não significasse ruptura, que respeitasse a tradição e a continuidade da fé cristã.

Nasceu na Marktl am Inn, na Baviera (Alemanha), em 16 de abril de 1927. Era sábado de Aleluia e um presságio acompanhou a criança: ela foi a primeira a ser batizada com a nova água batismal. A adolescência passou em um seminário regional onde viu os potentados marrons - como chamava os nazistas - dominarem seu país e levá-lo à guerra. Arrolado no Exército, o jovem desertou. Depois da guerra, voltou aos estudos de teologia.

Padre por pouco tempo em uma paróquia de Munique, foi lecionar em diversas universidades alemãs até concluir o doutorado. Professor em Tübingen, renunciou à cátedra diante da agitação estudantil que tomou conta do lugar em 1968. Trocou-a por Ratisbona, onde mais tarde voltou, já como Bento XVI, para dar uma aula em uma das viagens símbolos de seu papado.

Na ocasião, defendeu o diálogo entre fé e razão. Mas se valeu da história de um imperador bizantino que acusava o Islã de impor a fé pela espada para argumentar que agir contra a razão é contra a natureza de Deus. Uma tempestade de protestos muçulmanos seguiu-se ao uso desse exemplo para apoiar sua tese.

Agostinho

Bento XVI é rotulado por adversários de conservador e até de reacionário. Dizem que, por enxergar o mundo por meio de Santo Agostinho, a visão dele é pessimista. "Ratzinger pensa que só a Cidade de Deus tem o discernimento sobre onde está Deus e acha que a modernidade radicalizou de tal modo a razão que não deixou espaço para Deus", afirmou o teólogo Leonardo Boff.

Acusam-no de abalar o diálogo ecumênico ao afirmar a primazia da função salvífica de Cristo sobre outras religiões e a superioridade da Igreja Católica em relação às outras cristãs. Dizem que mantém a Igreja imóvel, apesar de sua tentativa de recuperar, depois do fracasso do comunismo, o papel de esperança desempenhado pelo catolicismo na história ocidental.

Mas era capaz de compartilhar o diagnóstico de Horkheimer e de Adorno, em Dialética do Esclarecimento, que criticava a razão moderna - transformada em dominação, ela levaria ao totalitarismo e à barbárie. Ao visitar Auschwitz, em uma das primeiras viagens como papa, perguntou-se diante do campo nazista: "Como isso foi possível?"

Debateu com o filósofo Jürgen Habermas, questionando a eficácia da razão comunicativa como base de uma ética e de uma moral universal. Acredita que a resposta à ameaça da barbárie são os instrumentos tradicionais do cristianismo - a oração, o amor e a fé -, dada a insuficiência das instituições humanas.

Não fez nenhuma concessão aos que pregavam a ruptura com a tradição como continuidade do aggiornamento da Igreja. Não mudou o veto à comunhão dos descasados nem permitiu aos padres o matrimônio - tentando evitar o nascimento de padres divorciados. Combateu os autores da Teologia da Libertação, como o brasileiro Leonardo Boff, porque acreditava que a ação caridosa e não a política traria a verdadeira libertação.

Marxismo

Vê no marxismo a versão materialista da esperança cristã que, no lugar de Deus, busca a redenção no partido. Para ele, a "adoração ateísta" sacrifica à ideologia o humanismo. Seus adeptos, diz, rejeitam as considerações morais como burguesas, como Bertolt Brecht, para quem a única virtude de quem luta pelo comunismo.

Bento XVI manteve a preocupação com o marxismo mesmo depois de papa. Hoje não há mais revolucionários na Europa transformando igrejas em sessões eleitorais, como na Paris de 1793, do pintor Evariste Gamelin de Os deuses têm sede, de Anatole France. Não. Nem os revolucionários frequentam as igrejas no velho continente. Vazias, elas fecham. O papa tampouco vê no liberalismo a resposta para a renovação dos fiéis.

Esse homem aparentemente contraditório é, na verdade, de uma coerência férrea. Está entre os jovens teólogos que sacudiram Roma e sua Cúria no Concílio Vaticano 2º. Lutou contra os tradicionalistas. Em 1966, identificou o que achava ser as primeiras tendências inquietantes na renovação da Igreja. Um "certo espírito partidário" levava para a igreja o dilema do século: reforma ou revolução.

Preocupa-se com a mudança da liturgia ocorrida também sob Paulo VI - a antiga, fixada pelo Concílio de Trento, foi abandonada e proibida. Ratzinger enxerga nessa ruptura uma ameaça à fé e à unidade da Igreja. Diz que não há como mudar a forma de orar dos fiéis sem alterar sua crença.

Foi nomeado para a Comissão Teológica Internacional, na qual trabalhou com dois dos pensadores que mais o influenciaram: Henri de Lubac ("um decidido lutador contra tudo o que ameaçava fundamentalmente a fé") e Hans Urs von Balthasar. Os três colaboraram com a revista Communio em parceria com d. Luigi Giussani, fundador do movimento Comunhão e Libertação.

Bento se tornou cardeal de Munique pelas mãos de Paulo VI, em 1977. Participou da escolha de João Paulo I e de João Paulo II, de quem seria um dos principais colaboradores - em 1981, nomeou-o prefeito da Congregação da Doutrina da Fé. Em 2005, foi sua vez de se tornar papa.

Mufti

Visitou em 2007 o Brasil e canonizou Frei Galvão. Ratzinger é um papa de poucas viagens, se comparado a seu antecessor, João Paulo II. Além de Ratisbona e Auschwitz, as de Londres e à Turquia marcaram o papado. A última pela oração ao lado do grande mufti de Istambul, Mustafá Cagrici. A primeira pela aproximação com os anglicanos e pela presença em um dos mais secularizados países da Europa.

Ratzinger é o homem que pediu a Deus que tivesse piedade da Igreja. "Senhor, frequentemente a Tua Igreja se parece com uma barca que está para afundar". Enfrentou escândalos de pedofilia e viu o irmão Georg ser alvo de acusações de conivência com castigos aplicados às crianças do coro de Ratisbona.

Não se preocupa em administrar a Igreja como uma empresa. Não mede o sucesso de sua ação pastoral pela quantidade de fiéis que conquista. Lega uma Igreja mais unitária e distante das ameaças de cisma nascidas após o Concílio Vaticano 2º.

Política: ênfase deixou de ser na ação

Joseph Ratzinger acha que o papado deve preparar a Igreja para uma nova realidade: a de ser minoria. E desde os tempos de cardeal repetia a parábola do grão de mostarda para justificar qual seria o papel dos cristãos no mundo secularizado. Uma igreja de poucos para preparar o futuro e diferente da Igreja militante dos tempos de Paulo VI, que em 1967 publicou a encíclica Populorum Progressio.

Esta pregava o acolhimento dos desvalidos, a divisão das terras, o imposto sobre grandes fortunas e foi um divisor de águas. Ao escrever que havia "soado a hora da ação", Paulo VI parecia trazer para a Igreja a 11.ª das Teses sobre Feuerbach, de Karl Marx ("Os filósofos só interpretaram o mundo diferentemente; importa é transformá-lo").

Aos católicos cumpria mudar a realidade injusta dos países subdesenvolvidos. Comparada a essa Igreja, a de Ratzinger foi conservadora. Ele fez uma releitura da Populorum Progressio em sua encíclica Caristas in Veritate. A ênfase da ação cristã, apesar de ainda defender a reforma agrária, passou para a caridade

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