Em 14 de abril haverá eleições na Venezuela. A campanha oficial terá apenas dez dias, embora Nicolás Maduro esteja no palanque eleitoral desde que, em dezembro passado, foi ungido candidato pelo próprio Hugo Chávez. A partir daquele momento toda a engrenagem da máquina chavista foi posta a serviço da candidatura do sucessor do falecido presidente. Não apenas o Partido Socialista Unido da Venezuela, mas todas as instituições do Estado venezuelano, a começar pela Suprema Corte de Justiça, que confirmou Maduro como presidente interino, contrariando a Constituição, para que ele pudesse melhor projetar-se como figura presidencial. Tudo isso em meio à máxima manipulação política da agonia final, da morte e do velório do presidente Chávez.
Os episódios recentes revelam, uma vez mais, a natureza do movimento e do regime até então liderados por Chávez. Sob uma fina camada de verniz democrático se esconde um artifício. Há eleições, mas o Estado, ao invés de resguardar condições de igualdade entre governo e oposição, é posto a serviço do partido e do candidato oficial. E não apenas durante as campanhas eleitorais. O Estado está a todo tempo mobilizado com o objetivo de preservar a regra de ouro do regime: o poder não pode mudar de mãos.
Com a aprovação da reeleição sem limites, em 2009, pretendeu-se assegurar a perpetuação do próprio Chávez até o longínquo ano de 2030. Hoje não existe mais quem personificava, num só e mesmo homem, o comando do Estado, das Forças Armadas, do governo e do partido. Mas a regra de ouro continua de pé. E não será modificada por livre iniciativa do chavismo, por maiores que sejam os seus conflitos internos.
A partir de 2004, quando Chávez iniciou o expurgo das Forças Armadas e da PDVSA (a estatal venezuelana de petróleo) e a submissão do Poder Judiciário, o país começou a descer a ladeira do autoritarismo. De lá para cá, o Judiciário tornou-se um apêndice do Poder Executivo. Não só a Corte Suprema, mas também os tribunais inferiores. Para que não pairasse dúvida sobre o destino dos insubmissos, em 2009 o presidente venezuelano mandou prender uma juíza que concedeu livramento condicional a um banqueiro desafeto do chavismo. A maioria chavista na Assembleia Nacional delegou poderes excepcionais ao presidente para que ele, por diversas vezes, decidisse matérias cruciais por decreto. Quanto essa maioria se viu ameaçada, Chávez mudou o sistema eleitoral.
Com a retomada da concessão da RCTV, em 2007, uma única emissora de televisão aberta não alinhada ao governo permaneceu em operação e agora, por falta de garantias, está sendo vendida a um amigo do regime. Para intimidar a imprensa, em 2010 a Assembleia Nacional estabeleceu punições aos veículos que "transmitam mensagens que possam causar desassossego à cidadania ou perturbação à ordem pública". No mesmo ano, para asfixiar a sociedade civil, aprovou a Lei de Defesa da Soberania Política e Autodeterminação Nacional, que prevê a prisão, por até 15 anos, de dirigentes de ONGs que tenham recebido recursos do exterior. Desde 2008 faz parte das Forças Armadas do país, e responde diretamente ao presidente da República, uma milícia armada com fuzis de assalto, constituída por mais de 100 mil homens.
O regime chavista não é uma democracia populista. É um fenômeno mais virulento, que bebe em várias fontes, nenhuma delas democrática: o caudilhismo militar nacionalista, presente no culto a Simón Bolívar, na retórica antiamericana e no personalismo de Chávez como chefe político-militar da nação; o populismo protofascista do primeiro peronismo, com a intensa propaganda estatal das qualidades excepcionais do líder e o cerceamento da liberdade de imprensa; o socialismo cubano, que forneceu a Chávez não apenas um ponto de referência ideológico, mas experiência prática e pessoal de apoio para combinar políticas sociais com controle político.
Todas essas tradições do pensamento e da ação política compartilham um antagonismo radical ao liberalismo político, que consideram não uma conquista civilizatória, uma condição indispensável, embora não suficiente, da democracia contemporânea, mas uma enfermidade que debilita a nação e o Estado e/ou um ardil burguês para manter a dominação de classes. Enxergam nos adversários inimigos a destruir ou inabilitar. Na linguagem do chavismo, essa visão aparece sob a forma do insulto. Chávez chamou Henrique Capriles de "fascista", "porco", "vende-pátria" nas eleições de outubro passado. Na mesma toada, Nicolás Maduro começou a atual campanha fazendo comentários homofóbicos a respeito do candidato da oposição.
O discurso oficial insiste em dizer que a oposição nada mais é que um entulho histórico (a velha oligarquia). Mentira. Estão na oposição homens como Luís Manuel Miquilena, comunista histórico que rompeu com Chávez, Teodoro Petkoff, antigo guerrilheiro convertido à social-democracia, o general Raúl Baduel, que Chávez pôs na prisão quando passou a criticá-lo, Henrique Capriles, governador eleito de Miranda, de 42 anos, novamente candidato, que vem dando grande demonstração de coragem pessoal e política, além de milhões de venezuelanos - uns mais, outros menos conhecidos - que não se agacham ante o rolo compressor do chavismo.
Este será um ano especialmente perigoso na Venezuela. O Brasil deve atuar - com habilidade, mas com clareza - em favor da progressiva recomposição das condições de convivência e diálogo entre as forças políticas no país vizinho. Brasília ajudou a trazer a Venezuela para o Mercosul. Apesar de enfraquecida, a "cláusula democrática" continua vigente no bloco. As ressalvas que a presidente Dilma Rousseff fez na manifestação de pesar pela morte de Chávez precisam ganhar forma concreta. Está na hora de o governo venezuelano saber que o Brasil espera mais democracia na Venezuela. E não apenas mais negócios.
* Diretor Executivo do iFHC, é membro do GACINT-USP.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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