A decisão foi tomada com a costumeira sagacidade, um dos atributos mais incensados do ex-presidente Lula. Mas não faz jus à importância política que ele tem na História recente do País. Quando, a dois anos do fim do mandato da presidente Dilma Rousseff e dos governadores estaduais, a população e o sistema político são instados a derivar para a dinâmica da sucessão, todos perdem alguma coisa.
Perdem antes de tudo os governos, que trocam suas agendas executivas e seus planos de obras, investimentos e repasses por afagos em aliados, reprimendas em adversários e trancos em inimigos. Atos que deveriam ser corriqueiros se convertem em factoides, decisões são antecipadas ou postergadas com o propósito de chamar a atenção e dramatizar a relação com a sociedade. Tudo sai do eixo, da dimensão do que é razoável, escorre pelo ralo das maldades e bondades de que é feita a face escura da política - uma face que se suporta bem quando a outra face exibe vigor e determinação, o que está bem longe de acontecer. E assim, como que de repente, jogam-se todos num frenesi para acumular trunfos, "adensar o entorno", compor base política e atrapalhar os adversários.
Prova disso é a reforma ministerial promovida pela presidente na semana passada, em meio ao anúncio de novos benefícios à população e a uma nova onda de aprovação popular a seu governo. A troca de ministros não seguiu nenhuma lógica gerencial, foi pura fisiologia e ajuste para acomodar parceiros e manter intacta a base governista. Como disse o deputado federal Alfredo Sirkis (PV-RJ), "alguns ministros insignificantes saíram e outros ministros insignificantes entraram". Abriram-se dessa forma mais espaços para a ação predatória dos partidos aliados, sem critério algum ou justificativa séria.
O governar, nesse quadro, torna-se exibicionismo, marketing e construção de imagem. Governos e governantes ganham em protagonismo e visibilidade, mas perdem em planejamento e eficácia, agindo na contramão do que deles se espera. Assume o primeiro plano, sem nenhuma dissimulação, aquele "perpétuo e irrequieto desejo de poder" que Thomas Hobbes (1651) considerava tendência geral dos homens.
Mesmo no universo imediatamente político, quer dizer, no mundo dos políticos e dos partidos, não há só ganhadores. Os que se posicionam na situação, estejam em Brasília ou nos Estados, ganham certamente alguma coisa. Foi pensando neles que Lula decidiu lançar Dilma à reeleição. Com sua argúcia autorreferenciada, imaginou criar um fato que ajudasse o governo a visualizar amigos e inimigos, tanto dentro quanto fora da coalizão governante. O sinal de largada significou que a partir de agora políticos e partidos situacionistas devem maximizar o uso de seus recursos de poder para infernizar a vida dos adversários e tentar cristalizar suas marcas e identidades. Devem pôr em movimento uma enxurrada de obras, promessas e realizações. Devem rever e ajustar cronogramas anteriores ou simplesmente inventar outros às pressas. Menos discussão, crítica e reflexão, mais movimento e divulgação.
No campo das oposições, o estrago é ainda maior, pois elas são forçadas a acelerar a resolução de seus próprios dilemas e dificuldades. Ao fazerem isso abrem mão de um trabalho mais cuidadoso, mais denso, mais afinado com suas tradições e mais atento aos problemas nacionais. Tendo de interagir com um futuro artificialmente antecipado não conseguem resolver nem acomodar suas contradições e tensões, perdendo força antes mesmo de irem à luta. Os ruídos e arestas entre José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves no interior do PSDB, assim como os improvisos que o PSB é obrigado a fazer para dar corpo e envergadura a Eduardo Campos, são a ponta mais visível desse iceberg.
Isso não quer dizer que as oposições terminem por ver aumentar sua letargia. Elas até poderão chegar em condições razoáveis à disputa eleitoral de 2014. Mas dificilmente farão isso sem um esforço desproporcional, sangrando bastante e varrendo a sujeira para debaixo do tapete. Terão menos tempo para reunir seus pedaços, elaborar um programa consistente que parta de um diagnóstico profundo da realidade nacional e tenha engenho e arte suficientes para seduzir os eleitores. Em vez de candidatos oposicionistas fortes, sustentados por proposições substantivas e coerentes, sintonizados com correntes de opinião e interesses conscientes de si, surgem candidaturas alternativas impulsionadas por apetites pessoais e regionais. Dar-se-á o mesmo no campo situacionista, já que seus candidatos serão levados a requentar o conhecido, em vez de tentar dar um passo à frente e inovar. A pressa é inimiga jurada da perfeição.
A antecipação casuística do calendário eleitoral é ruim para a democracia e para a massa de eleitores, em especial aqueles setores sociais (os pobres, os excluídos, os discriminados) que mais teriam a ganhar com a existência de um debate democrático de qualidade, pedagógico e incorporador. A partir de agora tal debate se tornou hipótese remota.
A manobra de Lula - como, aliás, qualquer manobra em política - traz consigo alguma dose de risco. Ela submete Dilma a um teste de resistência. A candidata situacionista, que hoje é a maior beneficiária da antecipação, terá de caminhar daqui para a frente com um pé em cada canoa, apresentar-se ora como gestora e governante do presente, ora como fiadora de um futuro que parece distante demais. Poderá chegar inteira e fortalecida às urnas de 2014, mas poderá também acumular algum desgaste por excesso de exposição. Se a calmaria se instalar no País, ela se apresentará como sua criadora e tenderá a magnetizar de forma invencível todo o campo político. Se, porém, a vida não lhe fornecer só temperaturas amenas, brisa e água fresca, chegará extenuada ao momento eleitoral, será responsabilizada por erros e fracassos e terá poucos ombros amigos em que se apoiar.
Professor Titular de Teoria Política e Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais de Unesp
Fonte: O Estado de S. Paulo
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