As manifestações de rua que vêm ocorrendo nas últimas semanas no Brasil já receberam as mais variadas interpretações. Diante da magnitude e do potencial revolucionário em termos de mudanças das instituições constitutivas da sociedade brasileira fica difícil não fazer algumas conjecturas para tentar entender a sua natureza e significado. Entretanto, só com o tempo e após desenrolados os acontecimentos será possível entendê-las, pois percebe-se que o movimento constrói seu caminho à medida que o percorre. Mas existem pelo menos dois aspectos que não deveriam ter nos surpreendido e uma indagação que cabe fazê-la: como afetará o desenvolvimento do país?
O que não deveria ter nos surpreendido é o fato das manifestações no Brasil serem resultado de contágio, num mundo conectado por internet e redes sociais em que imagens e ideias se difundem instantaneamente. Há um elo comum que liga as movimentações na Turquia e no Brasil, com as primaveras do mundo árabe e as frequentes rebeliões na China, onde o medo ainda contém o povo. O elo comum é a emergência de uma "nova classe média global", em função do rápido crescimento dos países emergentes. Tanto no Egito, na Turquia como no Brasil não são os miseráveis, nem os mais pobres, que iniciam e lideram as manifestações, mas pessoas com nível de educação e renda acima da média, e que têm acesso a redes sociais, que recebem e passam informações e descobrem que pode-se organizar protestos e manifestações quase que instantaneamente, pois estão conectados "on line" a um meio de comunicação em massa. Assim, movimentos sociais em rede é o segundo elo comum, de forma que as manifestações de rua no Brasil tem esse elo comum com Occupy Wall Street.
Foi então a geração de emprego, o aumento nos salários da base da pirâmide e a ascensão social de uma camada significativa da população que, com a melhoria no padrão de vida e na educação, deixou a pobreza em que se tem de lutar cada instante pela sobrevivência; que, decepcionada e indignada, se lança na luta política para não ter as suas expectativas e sonhos frustrados. Essa nova classe média quer ter voz, valoriza a liberdade individual, a democracia e demanda por melhores oportunidades. Na verdade, temos um sistema político e partidário que não preparou o país nem ajustou as instituições para uma nova realidade com a ascensão da nova classe média e o fenômeno da construção de um novo poder politico por meio das redes sociais.
A rota proposta pelas manifestações envolve uma nova forma de democracia que ainda não sabemos como será
Assim, de repente surge o povo - um poder que se manifesta em carne e osso, em locais públicos convertidos em espaços de poder político - e percebe que o Estado não funciona, mas extrai uma carga de tributos de primeiro mundo devolvendo serviços de péssima qualidade de terceiro mundo, a começar pelas demandas básicas do ser humano como saúde, educação, segurança e mobilidade urbana; percebe que temos um sistema de representação politica que lembra do povo apenas nas eleições; uma elite política ou corrupta em busca de interesse próprio; infraestrutura em frangalhos; e burocracia incompetente e com privilégios exorbitantes.
É a rejeição total da classe política, dos partidos e do Estado, simbolizado nas marchas para os palácios governamentais e ataques às Assembleias Legislativas e ao Congresso Nacional. É um fenômeno novo no Brasil. São pessoas que decidem, individualmente, manifestar sua indignação e, conectando-se, se juntam para vencer o medo da repressão do Estado. Por meio da troca de informações nas redes sociais percebem que podem se unir e construir, podem ser donos do poder para defender seus interesses individuais. Não são manifestações organizadas por partidos ou sindicatos e nem representam uma classe social, uma categoria, uma minoria ou um grupo étnico ou religioso.
Nessas manifestações não há liderança, são indivíduos, dezenas, milhares que se auto-organizaram e cooperam para formar uma nova fonte de poder. É evidente que esse novo poder conflita com o poder estabelecido, mas nada garante que esses movimentos serão capazes de promover mudanças duradouras nas instituições.
A velha classe política rapidamente está tentando tomar a bandeira dos manifestantes, e o presidente do Senado, colocando-se à frente do movimento, vem comandando a aprovação de algumas de suas reivindicações. De nada adianta converter a corrupção em crime hediondo se o nosso "sistema" é tal que não são aplicadas nem as penalidades previstas pela legislação em vigor. Gastar mais em educação e saúde em nada vai melhorar se o sistema e as práticas não sofrerem mudanças profundas. Na melhor das hipóteses, se os recursos não forem desviados, vamos ter mais do mesmo
Para concluir, cabem algumas observações sobre como o "novo poder" afetará o futuro desenvolvimento do país. Observa-se nas manifestações e na rede social que as pessoas começam a perceber que, individualmente, são a fonte de poder e querem ser ouvidas, e seus interesses e expectativas, respeitados. Nesse sentido, é um movimento liberal e contrapõe-se frontalmente ao pensamento da esquerda que acredita que a tomada do poder do Estado é condição para transformara a sociedade e promover o desenvolvimento. O caminho proposto pelas manifestações nas ruas e praças, seja do mundo emergente ou nos países desenvolvidos, envolve uma nova forma de democracia que ainda não sabemos como será. Será pela devolução do poder pelo Estado? Será pela descentralização das decisões que podemos ter o fortalecimento dos indivíduos e daí da sociedade civil, que tem que construir novas instituições políticas e por meio delas controlar aqueles que ocupam posições no aparelho de Estado e daí teremos desenvolvimento sustentável e duradouro. Qualquer que seja o caminho trilhado pelo Brasil, o povo será muito mais exigente com os políticos.
Yoshiaki Nakano, mestre e doutor em economia pela Cornell University, é professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP/FGV). Ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP).
Fonte: Valor Econômico
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