Depois do conjunto de manifestações Brasil afora no mês de junho, fica claro que há duas ordens de questões na atual conjuntura. A primeira é que os brasileiros, de um modo geral, anseiam por mudanças no modo de se fazer política no Brasil. Desejam maior probidade no trato com a coisa pública e um mínimo de bom senso por parte dos dirigentes políticos. Esse é o tom geral nas reclamações pela diminuição da corrupção. Para isso, o governo e o Congresso estão sacando da manga a carta da reforma política. A segunda questão é a qualidade do governo e das políticas públicas implementadas, nos diferentes níveis da federação. Os brasileiros anseiam por políticas mais efetivas, que atendam às diferentes demandas sociais e que sejam executadas com eficiência.
No caso da reforma política, governo e Congresso parecem não se entender muito bem. Ela foi sacada como resposta imediata às manifestações. Mas, ao que parece, ninguém sabe que direção tomar. De início, foi proposta uma Constituinte exclusiva, ideia essa logo retirada da agenda tendo em vista o veto dos juristas. Depois veio a ideia de um plebiscito, que parece morrer devagarinho por inanição, visto que, de repente, todos se deram conta de eventuais problemas que podem surgir aí para o status quo.
De fato, no contexto da sociedade brasileira, uma reforma política é fundamental e deve ser pensada, sobretudo, no modo de se fazer política no Brasil. Deve estar voltada a mudar as regras democráticas com o objetivo de ampliar a publicidade dos atos dos dirigentes públicos, impedir o arbítrio do poder econômico nas decisões democráticas e assegurar maior capacidade dos eleitores para controlar as atividades de seus eleitos. Não resta dúvida de que a reforma política é fundamental. A sociedade precisa continuar mobilizada por ela, mas é necessário observar também o processo das políticas públicas no Brasil e a qualidade da atuação dos governos. Nesse caso, não bastará uma reforma política para corrigir os rumos. Será necessário também uma reforma do Estado.
Resposta à cidadania passa pela reforma do federalismo
A agenda da reforma do Estado é mais complexa e seus resultados não são imediatos. Desde a Constituição de 1988 e o conjunto de reformas realizadas ao longo dos anos 1990, uma série de questões relacionadas à modernização da gestão pública foram aprimoradas. Houve melhorias de fato, mas uma série de passos precisam ser ajustados para a devida efetividade das políticas e o melhor atendimento dos interesses da sociedade.
Em primeiro lugar, devemos levar em consideração as especificidades do federalismo brasileiro. O sucesso das políticas públicas depende, e muito, da coordenação e cooperação dos entes federados. A União concentra a maior parte dos recursos oriundos da tributação e dita, de alguma forma, o ritmo e a disponibilização dos recursos necessários. Por meio de seus programas e políticas, delimita o conteúdo da agenda das políticas públicas e difunde as condicionalidades necessárias.
A delimitação dessa capacidade de agendar o conteúdo das políticas assegura maior capacidade de governar, no contexto do presidencialismo de coalizão. Todavia, a qualidade das políticas públicas fica prejudicada pelo fato de não se observar os problemas de implementação e a necessidade de coordenação e cooperação dos entes federados - estados e municípios. O sucesso na implementação de uma política depende da atuação dos agentes que estão na ponta, ou seja, que se relacionam diretamente com os cidadãos. Nesse caso, é necessário observar a capacidade dos estados e municípios na consecução das políticas desenhadas pelo governo, no plano da União. Sem observar o problema da implementação, essa agenda da inefetividade das políticas públicas no Brasil permanecerá e continuará como uma espécie de problema latente, que pode explodir a qualquer hora, como foi em junho passado.
No sentido dessa cooperação e coordenação das políticas públicas, duas questões são colocadas. Primeiro, a capacidade do governo de estabelecer liderança política nesse processo, delimitando as prioridades e percursos. Segundo, a capacidade de gestão das organizações que estão na ponta do processo, ou seja, que se relacionam diretamente com os cidadãos. Sendo assim, os municípios têm um papel primordial e sua atuação pode tanto tornar um sucesso, quanto um fracasso uma política pública delimitada.
Boa parte dos problemas de gestão no Brasil está no fato de que os recursos não chegam na ponta. E não chegam por conta de uma incapacidade de gestão que não permite a devida implementação das políticas. Dados do IBGE apontam que apenas 33,7% dos municípios da região Nordeste têm um cadastro informatizado do IPTU. Na região Norte são apenas 36,2% dos municípios. Dos municípios até 5000 habitantes, segundo o IBGE, apenas 259 têm serviços informativos por meio de páginas na internet e apenas 22 têm ouvidoria.
Nesses mesmos municípios, apenas 78 têm projetos de habitação que partam de iniciativa da própria prefeitura. De um modo geral é baixa a média de servidores, nos municípios brasileiros até 500.000 habitantes, com curso superior, beirando em torno de 3,5%. Num contexto como esse, é difícil considerar que a implementação será bem sucedida, seja por conta da simples falta de formação ou pela ausência de instrumentos de gestão e informação estratégica.
Se queremos realmente dar algum tipo de resposta à cidadania no Brasil, o tema da reforma política não bastará. Ela pode até corrigir a forma de se fazer política no Brasil, se for bem sucedida. É necessário olhar também para o processo de implementação das políticas públicas e aprimorar a capacidade da gestão pública no Brasil no contexto de sua complexidade. E aí não bastará uma política de governo, será preciso uma política de Estado que transcenda os governos e seja de longo prazo. O primeiro passo, talvez, seja observar as condições do federalismo brasileiro e os entraves daí provenientes. Mas, pelo visto, ninguém quer falar sobre isso.
Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador e pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público (Crip).
Fonte: Valor Econômico
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