Escritor lança livro infantojuvenil e terá obra poética completa reeditada
'Poema Sujo', de 1976, foi escrito no exílio, quando o poeta não sabia se teria muito mais tempo de vida
Morris Kachani
SÃO PAULO - O pequeno mas aconchegante apartamento em Copacabana onde vive Ferreira Gullar, 82, junto com a gatinha que ganhou de presente da cantora Adriana Calcanhoto há dois anos, reúne um notável acervo nas paredes.
Obras de Siron Franco, Marcelo Grassmann, Rubem Valentim, Osvaldo Goeldi, Alfredo Volpi, e um belo retrato do poeta assinado por Iberê Camargo, disputam espaço com as pinturas de natureza morta feitas pelo próprio Gullar e os móbiles à moda de Calder que ele confecciona.
Pelos sofás e estantes, dependendo do dia, também descansam um punhado de papéis recortados e espalhados ao acaso sobre cartolinas.
Estão em processo de maturação, ele explica. Poderão se transformar em colagens, e quem sabe em livro, como aconteceu no caso do infantojuvenil "A Menina Cláudia e o Rinoceronte", que está sendo lançado agora pela José Olympio. A editora está reeditando toda sua obra poética, com novos projetos gráfico e editorial.
Folha - Como enxerga sua obra, a essa altura da vida?
São momentos diferentes. O começo com "Luta Corporal" (1954) foi rebelde, criativo, audacioso, e deflagrou todo processo futuro da minha poesia. O "Poema Sujo" (1976) tem significação especial pela circunstância em que foi escrito [no exílio] e pela quantidade de matéria humana vivida e inventada --eu não sabia se ia continuar vivo por muito tempo ou não.
Considera-se atemporal?
Até aqui minha obra atravessa o tempo. Mais que isso, hoje o que tem acontecido é que as pessoas se interessam cada vez mais pela minha poesia, ao invés do contrário.
Como surgiu o livro "A Menina Cláudia e o Rinoceronte"?
Ferreira Gullar - Faço as colagens como hobby para me distrair e divertir, há anos. Isso nasceu de umas naturezas mortas que eu desenhava, e ao invés de colorir, recortava papel e colava em cima. Um dia tocou o telefone, fui atender, e o meu gatinho (já falecido) que estava em cima da mesa deu um tapa nos papéis e tirou da ordem. Quando voltei, colei tal como estava.
E desde então?
A partir daí eu desenhava e dava um tapa ao invés do gato. Depois deixei de desenhar e passei só a jogar recortes em cima do papel cartão. Usando tudo que chega aqui, envelope, capa de livro que vou jogar fora, jornal que já li.
Gullar não se comove com momento das artes visuais
Para ele, colagens que agora lança em livro são apenas frutos de um hobby
Escritor vê protestos com consequências positivas, mas critica falta de representação política nos movimentos
Em "A Menina Cláudia e o Rinoceronte", Gullar assina as ilustrações. No livro, Cláudia tenta ajudar uma rinoceronte a engravidar.
Este é o quarto livro de Gullar com a proposta das colagens --já ganhou um prêmio Jabuti de ilustração com um deles, "Bananas Podres".
Sobre esta surpreendente faceta do consagrado poeta, ele comenta, em tom de brincadeira: "Estou virando artista plástico sem querer".
"Descobri o acaso como uma coisa altamente criativa para mim", acrescenta ele, que tem sólida carreira como ensaísta em artes plásticas.
Folha - Por que o acaso?
Como não tenho motivação especial, o acaso sugere caminhos. Inclusive eu acho que esse processo de jogar os papéis à toa devia ser adotado nos colégios, porque qualquer criança pode começar a criar a partir disso. Quando estou fazendo esse trabalho é como se fosse um garoto.
O poema também é fruto do acaso?
O poema é exatamente o contrário, por isso estou há vários anos sem escrever. Porque se não sou levado pelo espanto, não escrevo. A poesia mesmo nasce de um estado de espírito de perplexidade diante do mundo. Não é algo que você faça porque quer. O poema utiliza a linguagem verbal, que é organizada.
Considera-se artista plástico?
Não, eu faço como hobby, como algo que me distrai e diverte. Estou virando artista plástico sem querer (risos).
Como avalia a produção de artes plásticas atual?
Se o cara bota urubu dentro duma gaiola, ou casais nus dentro de um museu, pra mim isso não é arte. Não me comove. Arte é uma coisa que as pessoas fazem, a natureza não é uma coisa que as pessoas fazem.
Como avalia o momento político atual?
É importante o pessoal protestar contra a situação, isso terá consequências positivas.
Só vejo um problema grave, que é de não haver representatividade política nos protestos. O país para ser governado tem que ter partidos e líderes.
E o comunismo?
O comunismo acabou, ele prestou e cumpriu seu papel como visão revolucionária que alimentou gerações e ajudou o processo social a avançar sobretudo na área do trabalhador, que conquistou mais direitos.
Poeta participa de debate em SP na segunda-feira
O poeta e colunista da Folha Ferreira Gullar, que tem a obra relançada neste ano pela editora José Olympio, participa de debate com Augusto Massi, editor, crítico e professor de literatura brasileira da USP, com mediação do repórter especial Cassiano Elek Machado. O evento, promovido pela Folha, pela José Olympio e pela Livraria Cultura, será nesta segunda, 5, às 19h30, no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura do Conjunto Nacional (av. Paulista, 2.073). Inscreva-se pelo e-mail eventofolha@grupofolha.com.br, informando nome e RG, ou pelo telefone 0/xx/11/3224-3473 em dias úteis.
Editora planeja 14 reedições e volume de melhores entrevistas
Com mais de 30 títulos publicados desde 1954, quando saiu a primeira edição de "A Luta Corporal", Ferreira Gullar tem há décadas a maior parte de sua produção, especialmente a poética, concentrada na José Olympio.
Até 2014, quanto se completam 60 anos de "A Luta Corporal" --na verdade, há um livro anterior, "Um Pouco Acima do Chão" (1949), mas este Gullar considera uma obra imatura--, a editora carioca pretende reeditar 14 títulos do autor.
Os primeiros saíram há poucas semanas, junto com o infantil inédito "A Menina Cláudia e o Rinoceronte". São eles os títulos mais recentes de Gullar, "Muitas Vozes" (1999) e "Em Alguma Parte Alguma" (2010), e o mais famoso, "Poema Sujo" (1976)
Por estes dias, estão saindo "Dentro da Noite Veloz" (1975) e "Na Vertigem do Dia" (1980), e até setembro chegam "A Luta Corporal" (1954) e "Barulhos" (1987).
Nenhum desses títulos estava fora de catálogo, mas a editora Maria Amélia Mello, que trabalhou no material com Augusto Sérgio Bastos, explica que reeditar é um modo de demonstrar atenção aos grandes autores da casa.
Além do novo projeto gráfico, as obras receberam novos aparatos: a textos de nomes como Alfredo Bosi e Alcides Villaça, somaram-se outros de Augusto Massi, Marco Lucchesi e José Castello.
Para 2014, a JO prevê outras sete reedições e dois novos volumes: uma antologia de textos de arte e uma seleção de entrevistas com o autor de frases como "Não quero ter razão, quero ser feliz".
A Cosac Naify e a Global também detêm obras do autor, como crônicas e ensaios. Os poemas renegados de "Um Pouco Acima do Chão" (1949) entraram como apêndice em "Poesia Completa, Teatro e Prosa", da Nova Aguilar. (RC)
Poeta é um 'laboratório permanente', diz especialista
Ferreira Gullar é o escritor brasileiro mais lembrado, nos últimos anos, como merecedor de um Prêmio Nobel de Literatura. Também costuma ser citado por especialistas como um dos maiores nomes da história da poesia nacional, junto a ninguém menos que Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.
"Nenhum outro poeta vivo tem tantos poemas tão amplamente reconhecidos como clássicos e antologiados", diz o poeta Antonio Cicero, um dos que colocam Gullar no mesmo patamar de Bandeira, Drummond e Cabral.
"Poema Sujo" (1976) é a obra mais consagrada da carreira que completa seis décadas em 2014, mas volumes como "A Luta Corporal" (1954) e "Na Vertigem do Dia" (1980) desenham uma trajetória de experimentações que resulta universal, na avaliação do poeta Marco Lucchesi.
"Gullar é um laboratório permanente. Ele foi quem mais experimentou na poesia brasileira, com alto grau de consciência dessa experimentação", argumenta.
A universalidade que resulta desse grau de consciência também é uma característica que, para o poeta e tradutor Ivo Barroso, faz do maranhense um poeta singular.
Barroso diz que Gullar chegou a se perder nas experimentações ao se envolver com o concretismo, nos anos 1950, e o cordel, na década seguinte, mas voltou "à poesia com P maiúsculo".
"Ele faz poesia universal, não poesia para quatro pessoas de São Paulo e três do Rio", resume.
É isso o que permite a uma obra angustiada como "Poema Sujo" --homólogo poético de "O Grito", do pintor Edvard Munch, segundo Barroso-- incluir versos tão acessíveis como "Lá vai o trem com o menino/ Lá vai a vida a rodar/ Lá vai ciranda e destino/ Cidade noite a girar", criados como letra para "O Trenzinho do Caipira", de Heitor Villa-Lobos. (Raquel Cozer)
Fonte: Ilustrada / Folha de S. Paulo
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