quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Judiciário paquidérmico - Cristian Klein

As atenções - e as críticas - hoje se voltam à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que admitiu novo julgamento aos réus do mensalão. Os desdobramentos da Ação Penal 470 para a política brasileira são importantes. Podem ter efeito dissuasório sobre a corrupção. Mas tão relevante quanto os rumos de José Dirceu & Cia - embora menos debatida - é a mudança em curso do sistema partidário nacional. E isso também tem o dedo do Supremo.

A proliferação de legendas está quebrando um longo período de estabilidade. Com o surgimento do PSD, PPL, PEN e agora Solidariedade, Rede e PROS - seis partidos num espaço de apenas dois anos - vivemos no mercado político desequilíbrio semelhante a uma escalada inflacionária no mercado econômico.

O Supremo que é tão cuidadoso e admite os embargos infringentes é o mesmo que costuma avançar sobre as regras eleitorais tal qual um paquiderme movimentando-se numa loja de louças. As marchas e contramarchas da verticalização das coligações, vigente em 2002 e 2006, e finalmente abolida, foram um caso exemplar de como a atuação dos magistrados, sem o conhecimento da prática política no dia a dia, pode gerar impactos indesejáveis. Em vez de favorecer a nacionalização, a verticalização levou a uma maior regionalização dos partidos.

Agora, algo parecido ocorre com os efeitos perversos da imposição da fidelidade partidária (a marcha) e sua posterior flexibilização (a contramarcha).

Primeiro, em 2008, o Supremo ratificou resolução editada em 2007 por seu braço especializado em matéria eleitoral, o TSE, que estabeleceu a perda de mandato quando o político troca de legenda sem justa causa - uma punição que, diga-se, nem sempre é cumprida pela lentidão da Justiça.

Depois, em 2012, concedeu ao então recém-criado PSD todas as prerrogativas usufruídas por partidos mais antigos: acesso ao tempo proporcional na propaganda de rádio e TV, aos recursos do fundo partidário e aos cargos das mesas diretoras e das comissões no Congresso. Tudo - mesmo sem o PSD ter participado da eleição anterior à Câmara dos Deputados (em 2010) como manda a legislação.

O Supremo fechou a porta para a infidelidade mas, bem ao lado, escancarou uma janela de saída. Essa janela são justamente os novos partidos, que se transformaram na melhor justa causa para os políticos abandonarem suas siglas. A infidelidade - ainda que não com este nome, pois agora vemos a proliferação de "fundadores" de partidos - continua. O problema é que, em vez de mudanças pontuais e no varejo, distribuídas pelo amplo leque de legendas, como ocorria antes, a migração é no atacado. De uma hora para outra, podemos ver surgir um partido grande, com uma bancada de 50 parlamentares na Câmara, como foi o PSD, ou médio, de 30, como promete ser o Solidariedade (SDD), liderado pelo deputado federal Paulo Pereira da Silva (PDT-SP).

Como sempre haverá inúmeros insatisfeitos em todas as legendas, criou-se um mercado para a figura do empreendedor político. É o sujeito que toma para si os altos custos da construção de um partido - o maior deles a coleta de cerca de meio milhão de assinaturas de apoio e o desgastante processo de certificação nos cartórios eleitorais - mas que passa a "vender" ou "alugar" as cotas do projeto, na medida em que o condomínio começa a ficar atraente. Cada Estado é oferecido a um deputado federal como se fosse um latifúndio político a ser explorado. Ali, o parlamentar terá autonomia que sua sigla atual não lhe proporciona - o famoso "espaço político" - ao controlar o acesso aos cargos do partido, os recursos do fundo partidário e a negociação do tempo de rádio e TV em possíveis coligações. Como há 27 unidades da Federação, o potencial de largada dessas legendas já parte da pretensão de formar uma bancada de tamanho médio, entre as dez maiores da Câmara.

Um parlamentar feliz com a abertura da janela - às vésperas do fim do prazo de um ano de filiação prévia para concorrer às eleições - chegou a comemorar: Paulinho da Força é o "novo Kassab". Ou seja, é o novo empreendedor político - um arquétipo ligado aos Estados Unidos do século 19, não por acaso exemplo de democracia onde os partidos têm organização frágil. Se nada for feito, outros empreendimentos virão, de dois em dois anos, a cada temporada de filiação.

É certo que nem todos vão prosperar. Outros fatores contam, como a competição e até mesmo a desacreditada ideologia. O Rede Sustentabilidade, por exemplo, apesar de liderado por Marina Silva, pré-candidata à Presidência da República que pontua em segundo lugar nas pesquisas, tem poder de atração limitado pela maior rigidez de princípios. No entanto, é exceção. O estrago vai sendo feito. Há o risco de um processo de autofagia, com uma fonte permanente de instabilidade.

O Supremo tirou o equilíbrio do sistema partidário brasileiro, que embora esteja entre os mais fragmentados do mundo, é estável. Com raras exceções, todas as principais legendas remontam à redemocratização nos anos 1980 e têm quase ou mais de 30 anos de existência. Seus tamanhos hoje são frutos de crescimento natural, não de um inchaço, incentivado pelo ativismo judicial.

Uma vez quebrado o equilíbrio, seu restabelecimento é difícil. Um projeto de lei tenta retomar o status quo - isto é, conferir tempo de TV e fundo partidário de acordo com o desempenho eleitoral e não pelo número de deputados cooptados. O texto foi aprovado na Câmara, mas está engavetado no Senado, desde a volta do recesso. Não há clima para votá-lo, afirmam o seu autor, o deputado Edinho Araújo (PMDB-SP), e o senador Humberto Costa (PT-PE). A proposta ficou rotulada como uma restrição à formação de partidos oposicionistas, entre eles o de Marina Silva, cuja popularidade cresceu com as manifestações de junho. A expectativa agora é que volte à agenda depois de passada esta segunda onda de novas siglas. "Carimbaram o projeto de governista. Mas ele não é contra A ou B. Toda essa argumentação cai por terra se ele vigorar a partir de 2016. O Kassab fundou o PSD antes. E agora quem quis montou o seu", diz Araújo.

A cientista política Andréa Freitas, da USP e do Cebrap, lembra que poucos países, como a Espanha, exigem fidelidade partidária tão rigorosa. "O TSE, em 2007, estava tampando uma panela de pressão sem ter nenhuma ideia do que tinha lá dentro. E agora explodiu", afirma.

Fonte: Valor Econômico

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