O PCC criou sociedade paralela, com regras que parecem as nossas, mas funcionam ao contrário
A ousadia do PCC, demonstrada nos telefonemas que o Ministério Público Estadual ouviu, analisou e divulgou recentemente, mostra que a força do crime organizado em parte está na sociedade desorganizada em que floresce e prospera. Sem dispor do mesmo aparato institucional dos poderes da República, tem ele, no entanto, a força da clandestinidade. Dirigentes presos continuam comandando ações criminosas, ameaçam autoridades e a realização de eventos públicos, ditam regras, até as relativas a sua própria prisão. A situação lembra, invertido, O Alienista, de Machado de Assis: o preso é que está livre e quem se pensa livre é que está confinado numa prisão invisível.
Da cadeia, o crime organizado administra empresarialmente não só a atividade fim, que nesse caso é o tráfico de drogas, como as atividades paralelas, que vão do suborno a assassinatos. Se o MPE levou três anos de investigações para descobrir sua estrutura de comando, sua organização e suas conexões na própria polícia, pode-se compreender facilmente que a organização tenha um poder de ocultação que não é pequeno. Até a cadeia é parte da organização criminosa, é seu instrumento de proteção e poder.
O principal trunfo do crime organizado é o de que se abriga na proteção da lei. E não há como ser diferente sem lesar os direitos de quem é inocente. O principal dirigente do PCC declarou há algum tempo que pode matar quem quiser. Os que o prendem, julgam e custodiam nada podem fazer contra ele. Está protegido pela prisão e pelo direito, e eles estão desprotegidos pela liberdade e pelo dever.
O PCC criou uma sociedade e um poder paralelos, com regras que parecem as nossas, mas funcionam ao contrário. É um caso sociológico de invenção social cuja eficácia maior decorre de sua ampla infiltração na sociedade. Os clientes das drogas traficadas são pessoas que não estão no crime. Compram, pagam e alimentam o volumoso dinheiro da economia do tráfico. Protegem a identidade dos fornecedores. São cúmplices da criminalidade.
O Estado é lento e pesado em assimilar tecnologias materiais e tecnologias sociais de contenção da criminalidade e de proteção aos direitos do cidadão. O Estado não se assume como Estado. Não temos, no Brasil, propriamente, as chamadas razões de Estado. O agente do Estado teme e vacila no cumprimento da lei, que existe no papel, mas não na vocação dos que governam e administram; a lei diz e o agente da lei desdiz, relativiza, ameniza, protela. A própria Justiça, não raro, em nome da defesa da lei, interpreta legislando, desfazendo a lei no fingimento de que a cumpre.
Dentro e fora da cadeia vai se gestando uma sociedade que, na incerteza quanto à força da lei e de quem a cumpre, cria as próprias regras, e para sustentá-las não tem alternativa senão a violência privada, na cadeia e na rua. A difusão dos aparelhos de comunicação rápida, como o telefone celular, viabilizou e acentuou o funcionamento em rede do crime organizado e aumentou-lhe o poder de comunicação e ação. Mas, como mostra a investigação agora concluída, a moderna comunicação o expôs completamente. É o efeito bumerangue dos meios modernos de relacionamento.
O crime organizado pode ser rastreado, ouvido, monitorado, identificado, localizado. Ganhou força e ficou fraco. A sociedade também se defende, com os mesmos recursos. O vigilante de moto que foi abordado por bandido de arma em punho na zona leste filmou toda a ação, a cara dos criminosos bem nítida, em close, com a microcâmera instalada na alça do queixo de seu capacete. Não só um dos bandidos levou tiros de policial que vira a cena, mas o que fugiu já foi identificado. Câmeras de segurança de lojas e bancos filmam bandidos agindo. Cada imagem dessas contém mais que o aparentemente inútil retrato de uma face mascarada.
A investigação recente do MPE, ao descobrir os nexos, a estrutura da delinquência organizada, o empreendedorismo dos criminosos, sua competência empresarial, indica que a criminalidade se moderniza, torna-se gerencial. O delinquente isolado e amador vai se tornando coisa do passado. O crime organizado até proclama que vai botando ordem na bagunça. Tornou o crime uma atividade racional, como a de um banco ou uma fábrica. Foi mais longe. Adotou a forma semirreligiosa da Cosa Nostra. Os membros da quadrilha se chamam de irmãos e, não raro, são mais irmãos que os da família convencional. São uma família porque são uma irmandade.
Os vínculos de lealdade não são formais, são os da palavra. Diferente do que ocorre no interior do aparelho estatal e da relação entre o Estado e a sociedade, os vínculos ali não são os do contrato, são os do trato, os da honra. Desrespeitar a lei é um divertimento; desrespeitar a palavra dada a um “irmão” é uma vergonha e um risco. As descobertas do MPE revelam os valores, regras e conexões do crime organizado e seu fundamento. Revelam as regras rígidas de sua moral peculiar, a alma de sua força que é a fonte de sua vulnerabilidade.
José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, publicou A sociologia como aventura (Editora Contexto)
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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