As ondas de ação política expressam saturação social
Certas situações, de tão esdrúxulas, têm o condão de promover mudanças na percepção dos atores sociais em relação a situações ou comportamentos que, de qualquer maneira, já seriam por si mesmos intoleráveis. Assim, embora a reiteração de condutas impróprias, ou a manutenção de um estado de coisas inadequado já fossem - em tese - razões suficientes para que a mudança de percepção se desse, parece faltar na realidade objetiva um elemento capaz de deflagrar subjetivamente nos atores a transformação da consciência.
Deve-se notar, contudo, que tal mudança de percepção não implica diretamente uma disposição à ação - ou, ao menos, a certos cursos de ação. Afinal, uma coisa é dar-se conta de que se convivia de forma mais ou menos normal até então (mesmo que a contragosto) com algo que se reputava como indesejável, mas que passa a ser notado como intolerável. Outra coisa é decidir que, diante do caráter intolerável de certas situações ou condutas, deve-se reagir ativamente contra elas, incorrendo em custos e riscos. É a magnitude desses custos e riscos que pode tirar alguém do imobilismo e ensejar ações.
Assim, por exemplo, se sou um eleitor indiferente à política e me abstenho de votar e de me informar sobre política, pois não vejo razões para isso, posso mudar de atitude caso certas condutas ou situações sejam tão ofensivas a minhas preferências (interesses ou valores) que mesmo minha habitual indiferença acabe por ser suplantada. Há de se notar, contudo, que de todas as ações políticas talvez a menos custosa de todas seja a de votar; mais ainda se o voto for obrigatório, como entre nós, de modo que o custo de justificar ou pagar uma multa é, no mínimo, igual ao de comparecer às urnas.
São muito diferentes atitudes como a disposição de sair as ruas, deixando de cuidar de afazeres privados, arriscando-se a apanhar da polícia ou de outros manifestantes, sendo alvo de balas de borracha ou coquetéis Molotov, tomando chuva ou podendo ser pisoteado por uma multidão em fuga. Nestes casos, a disposição à ação apenas surge porque algum evento suplantou o grau de "normalidade" do que até então era apenas desagradável, tornando-se não só objetivamente intolerável, mas tão intolerável a ponto de propiciar uma ação a despeito de seus custos.
Essa suplantação da "normalidade" pode-se dar de duas maneiras. Primeiramente, por uma situação ou atitude notada como demasiada ao ponto de suplantar o limiar que até então mantinha os sujeitos limitados a um grau mais contido de reatividade. Um exemplo recente disto foi a ida às ruas de milhares de manifestantes após a repressão promovida, em 13 de junho passado, pela Polícia Militar paulista contra os manifestantes na Rua da Consolação, em São Paulo. De tão desmesurada, a violência policial teve o condão de retirar da zona de conforto mesmo pessoas que até então condenavam as manifestações.
A segunda forma de suplantação da "normalidade" é a gota que transborda o copo. E esta enseja uma complexidade maior do que a primeira, que torna difícil compreender de forma nítida as motivações dos sujeitos políticos. Abusando da metáfora, um copo cheio de um determinado líquido pode transbordar pelo acréscimo de gotas de quaisquer outras substâncias. Assim, se tenho um copo cheio de vinho, posso transbordá-lo com gotas de água, de suco, de tinta ou do que quer que seja. Da mesma forma, uma coletividade saturada por situações ou condutas tidas como impróprias, porém inerte, pode passar à ação em decorrência de qualquer novo evento percebido como ofensivo, mesmo que desvinculado das causas iniciais.
O problema é que nem todo novo evento ofensivo, por razões que precisam ser explicadas circunstancialmente, enseja necessariamente uma reação. Nem todo novo evento é a gota que transborda o copo. Abusando novamente da metáfora líquida, é como se uma gota de óleo fosse jogada sobre um cheíssimo copo d'agua. Como eles não se misturam, o óleo, em vez de fazer transbordar a água, talvez apenas deslize sobre ela. Por isso, o desafio que se coloca à análise de cada conjuntura política é o de identificar as substâncias do copo e da gota.
Talvez isto seja um fator a explicar o porque de - na esteira das grandes manifestações iniciadas em junho do ano passado - não ter havido nenhuma reação popular de monta à manutenção do mandato do deputado Natan Donadon, condenado ao cárcere pela justiça. Tendo em vista o ânimo popular demonstrado anteriormente, um tal disparate parlamentar poderia sugerir que se teria um novo cerco ao Congresso, novos quebra-quebras, ou algo do gênero. Porém, não houve nada. Seria óleo sobre a água? Ou teria já havido o transbordamento, de modo que a nova gota já não seria capaz de produzir o mesmo efeito? Abandonando a metáfora, após a catarse representada pelas grandes manifestações talvez não só faltasse fôlego para uma nova investida, como também talvez faltasse ânimo.
O problema é que copos transbordados não se esvaziam por completo, de modo que novas gotas tendem a levar a um novo transbordamento. A dificuldade da análise de conjuntura política é identificar com precisão - na própria conjuntura - quando novos ciclos de transbordamento se abrem e se fecham. Assim, observando agora as manifestações contra a realização da Copa do Mundo e as preocupações dos governos em evitá-las, fica difícil medir com clareza se elas tenderão ou não a levar a um novo ciclo de radicalização mobilizadora. E, caso levem, quando tal ciclo ocorrerá.
Caso tais manifestações se iniciem por agora, mas se encerrem num delta de tempo similar ao das manifestações de junho de 2013, os governos e a Fifa não terão muito com o que se preocupar. Contudo, caso o gotejamento siga continuamente até o aniversário das manifestações do ano passado, certamente as razões para preocupações serão muitas, afetando não só a realização da Copa, como - em caso de tumultos na Copa - muito provavelmente o ânimo que cercará a realização das eleições. E tudo tende a se complicar mais ainda na contingência de um novo evento capaz de - sozinho - transbordar o copo, como fez a PM paulista no ano passado.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Fonte: Valor Econômico
Nenhum comentário:
Postar um comentário