• Não consigo estar entre os que celebram fim de um vergonhoso episódio histórico — nem acredito que esteja encerrado
- O Globo
O momento obriga a ir além do simplismo redutor e das palavras de ordem. Força a pensar, tomar consciência do que acontece, tentar examinar causas, imaginar desdobramentos. De certo modo, é como quem sofre de uma doença muito grave e tem de encarar a perspectiva de um tratamento que acena com algumas possibilidades de melhora, mas não garante cura e ainda traz sofrimento e efeitos colaterais devastadores. Nesses casos, as reações individuais variam de uma pessoa para outra. Uns entregam os pontos, outros se rebelam e negam os fatos, outros respiram fundo, tentam ser racionais e seguem em frente. Há quem procure curandeiros, quem vasculhe a internet em busca de informação, quem se coloque confiante nas mãos de especialistas. Talvez a maioria das pessoas alterne essas facetas em momentos diferentes.
Um estudo recente conclui que a capacidade de sentir felicidade ajuda a superar doenças. Até acredito. Mas não deve se tratar de uma capacidade tão cega que evite buscar tratamento. Tão confiante que negue o combate ao mal, em nome da crença de que dias melhores virão sem que façamos nada para construí-los.
Pessoalmente, tenho dificuldade em ver as coisas de modo apenas binário e não gosto de futurologia. Evito fazer previsões, boas ou más. Mas sei que os velhos mitos tinham razão simbólica, e os antigos gregos sabiam o que diziam quando afirmavam que Cronos, o deus do tempo, é também um cuidadoso jardineiro, além de ser o terrível Saturno que os romanos temiam. Devora os próprios filhos, é verdade. Mas também faz a árvore renascer, o jardim florescer, a colheita amadurecer.
Assim, nos dias que vivemos, não consigo estar entre os que celebram o encerramento de um vergonhoso episódio histórico — nem acredito que esteja encerrado. Não estou comemorando a saída de uma crise que, de tão complexa e profunda, exigirá um longo tempo de sacrifício e medidas duras para trazer os tais dias melhores. Tenho apreensões em relação a perigos que possam ameaçar conquistas preciosas das últimas três décadas, um patrimônio de que o país não pode abrir mão — as instituições garantidas pela Constituição de 1988 e pela redemocratização, a estabilização da economia e a responsabilidade fiscal com que os tucanos deram as bases de um crescimento indispensável, os projetos sociais e a diminuição da desigualdade que os petistas puderam desenvolver a partir dessas condições asseguradas por quem os precedeu.
Ao lado da preocupação apreensiva com qualquer ameaça contra esse tripé institucional, econômico e social, vejo também razões de um certo otimismo e fé no futuro, quando faço algumas constatações sobre nosso momento. Os poderosos estão sendo investigados e punidos, como jamais haviam sido — e essa nova conquista não tem preço. Mentiras elaboradamente arquitetadas e maciçamente impostas para enganar a população, durante anos, vão sendo desmascaradas. Os partidos que proliferaram como cogumelos e se igualaram em práticas escusas e clientelistas iludem a cada vez menos gente. Os jovens tendem a não mais lhes prestar obediência cega e a substituí-los por suas redes de contato. Bons sinais.
Ao mesmo tempo, a mídia concentrada em poucas mãos abre espaços para acolher vozes dissonantes, até mesmo porque não dá para ignorar essas vozes que se alastram na internet, em saudável efervescência de pontos de vista que corroem a força de dogmatismos. Nunca se escreveu ou leu tanto sobre política entre nós. É verdade que há na rede uma camada superficial mais visível, carregada de intolerância, ódio, agressão. Mas há outro estrato muito interessante, com ângulos inesperados, pontos de vista diversos, reflexões inteligentes e fecundas. Há mais observadores do que qualquer jornal ou revista comportaria. É claro que nessa grande bagunça há de tudo, inclusive o indesejável e o abjeto. A cada um de nós, a tarefa de filtrar a porcaria que não quer ingerir. E o cuidado de discernir o que visivelmente parte de uma origem única, pretendendo desviar o foco do que importa ou impor uma só forma de pensar e ver. Essa variedade de reflexões soma experiências, desloca certezas, nos enriquece, reforça o sistema imunológico democrata, ajuda a compor uma força coletiva capaz de erguer uma barreira resistente contra retrocessos, de modo a não perdermos as conquistas obtidas. E a ampliá-las, como merecemos e desejamos.
Essa força de opinião pública e apoio popular tem sustentado a Lava-Jato e se arrepia cada vez que parece surgir uma ameaça contra ela, venha de onde vier. Traduziu-se em dois milhões de assinaturas em favor de um projeto de leis anticorrupção, enviado ao Congresso, à espera de entrar em pauta. Congelando-o, parlamentares ficam marcados como coniventes.
O eleitorado passa a perceber a obstrução da Justiça como cúmplice da roubalheira e da mentirada. Começa-se agora a discutir e pressionar por uma reforma político-eleitoral. Que seja o passo seguinte. Logo e na direção certa.
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Ana Maria Machado é escritora
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