- O Globo
Em 1968 ou em 1969 fiz o curso “Urbanização e utopia”. Éramos quase todos estrangeiros naquela Harvard onde a palavra estrangeiro não existia, pois, como me disse um Thomas Skidmore — saudoso e recentemente falecido — “somos todos estrangeiros diante do conhecimento”.
Richard Moneygrand ministrou esse curso, definido como uma reflexão sobre os dilemas do individualismo moderno e as utopias nascidas dessa extremada valorização da parte sobre o todo. De um sistema no qual os elos entre homens e as coisas são mais importantes do que as relações dos homens entre si.
Lemos o clássico de Lewis Mumford, revisamos Platão, Thomas More e Fourier. Mas não esquecemos o Paraíso sem deixar de lado H. G. Wells, Kakfa, Aldous Huxley, Burgess, Orwell e os modernos arquitetos, os quais, como bons desenhistas, tentavam “solucionar” os erros de um sistema a ser redimido.
Fomos solicitados a falar das utopias de nossas sociedades. Um africano escreveu sobre as ideias de Kwame Nkrumah; um russo, sobre as utopias soviéticas; um francês, que sabia mais do que todos nós, abordou os escritos de Voltaire e Rousseau. Juan Porras y Porras, um mexicano aristocrático, exortou o que seria uma utopia caudilhesca para mostrar como os sistemas sociais fundados em elos pessoais seriam funcionais, caso não fossem atropelados pela modernidade do individualismo igualitário acasalado com a dominação burocrático-legal.
Coube, porém, a um par de colegas americanos a apresentação mais radical. Para eles, a “República” era a desmistificação das utopias. O humano seria movimentado por um equilíbrio instável entre crises de carência e abundância. A história era uma inútil busca terrena das idealizações que agravavam a sensação de erro (e da culpa) porque condicionavam a vida real (sempre contraditória) a códigos transcendentais feitos no céu, que nos tornavam devedores. As repúblicas democráticas e igualitárias voltadas para o mundo enfrentavam crises permanentes todos os dias. Nelas, tudo era crise, e a crise — frisavam — não era exceção, mas a realidade de suas perpétuas construções.
Jamais me esqueci deste trabalho que tenho plagiado ao longo de minha carreira. Os colegas americanos deram-me, num trabalho de semestre, uma diretriz para a vida.
Despertaram minha incredulidade nos sistemas fechados e estáticos. Só fui duvidar desta dúvida quando, num antigo estado de Goiás, tentei compreender sociologicamente os chamados “índios apinayé” e comecei a admirar esses jê-timbira com o seu saudável e explícito dualismo (“tudo tem o seu contrário" — o mundo se divide em gente do Sol e de Lua), suas associações e, acima de tudo, sua moralidade sem culpa e epifanias. Para eles, tudo o que nos afeta (acidentes, doenças, desonestidade, ressentimento etc...) foi “dado” pelos demiurgos, de modo que não há o que pagar ou compensar, pois não existe um grupo humano que não seja defeituoso ou torto por natureza. Sabem que somos finitos e falam de uma aldeia dos mortos, mas não postulam nenhuma imortalidade, pois até mesmo as almas — após uma longa, mas insossa vida no mundo dos mortos — morrem. Deste modo, não existem perseguidos nem tenebrosos perseguidores, esses avatares da discriminação e do autoritarismo.
Hoje, estou certo de que o humano é defeituoso, carente e encrencado. As utopias são ingênuas compensações inventadas por uma Europa para sempre enredada num realismo cruel e numa redenção impossível. A crise era a nossa marca, e a República jamais seria um sistema estático, mas um modo de vida a ser permanentemente corrigido. Ela, entretanto, só poderia funcionar com bom senso, amparada por uma ética de honestidade. A democracia — se ainda me lembro da conclusão dos meus jovens colegas — não resolve, ela é uma tentativa de resolução.
Findo o curso, eu estava mais para Orwell do que Platão. Foi quando eu me lembrei do Brasil e do sempre lúcido e antiutópico Bandeira. O Manuel que, na sua arrebatadora simplicidade, abafa a fanfarronice ideológica corrente, sussurrava uma utopia tão real quanto profética:
“Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei.”
A esperança é que os “reis” segurem esses amigos que confundem parentesco com papéis públicos, andam de bicicleta, montam em burro brabo e continuam convencidos de que ainda podem venturosamente subir em pau de sebo!
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Roberto DaMatta é antropólogo
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