quarta-feira, 22 de junho de 2016

Não há fichas limpas - Arnaldo Jabor

-O Globo, 21/6/2016

Não, não sei mais analisar a situação brasileira. Os fatos estão muito à frente de qualquer interpretação, que é sempre fugaz, com uma lógica que se perde em poucos instantes.

A sensação que tenho – estamos reduzidos a sensações – é que os hábitos tradicionais do velho patrimonialismo brasileiro, com suas teias ocultas de escândalos, estão arrebentando juntos e irrompendo da lama escondida por séculos.

Uma das razões é que nossa corrupção deslavada, nosso secular desgoverno se fragilizaram nesse mundo contemporâneo global e digital. Nosso Atraso ficou atrasado. As informações na velocidade da luz fizeram a opinião pública acordar sem saber bem para que ainda, mas já é um avanço.


Aquele estranho país, oscilando desde sempre entre o público e o privado, está deparando com um perigo: a própria ideia de “país” está ameaçada, se esgarçando com ilhas de civilização cercadas de miséria por todos os lados. Instituições continuariam existindo, mas sem poder para regular a vida social.

A consciência do desastre é grande, mas ninguém sabe o que colocar no lugar da merda que está aí. Não sabe porque talvez não haja. Como traçar um plano político onde a política se desintegrou? O Brasil é uma quadrilha. Todos estão implicados de algum modo. Nunca existiu vida sem o Caixa 2. 

Nisso, o Lula acertou. Esse era o método de funcionamento “normal”. Era impossível um político ignorar isso. Era normal. Agora, estão abertos os intestinos da pátria que nos pariu. E surge mais uma verdade óbvia: não há inocentes para ocupar cargos públicos. Todos são cúmplices. Não há fichas limpas. O Temer sabe disso e inteligentemente nomeou a melhor equipe econômica que já tivemos, sem contar lideres como Meirelles, o Serra, Maria Silvia Bastos, Pedro Parente, etc. Eles partiram para impor o óbvio na economia destroçada pelos ladrões e imbecis. Conseguirão?

A Lava Jato está matando o velho país vira-lata, graças a Deus, mas como salvá-lo, como organizar um país melhor? Tudo funcionava mal, mas funcionava pelas regras da velha roubalheira analógica. Havia até uma certa doçura nos ladrões de galinha. Depois do PT, tudo enguiçou. Sempre achei que o PT no poder seria uma previsível ladainha de slogans comunas, de voluntarismo, de gastos públicos malucos, mas, nunca supus que eles pudessem causar um estrago desse porte, com 170 bilhões de buracos negros no Estado. Isso foi o resultado da estupidez ideológica aliada à direita mais feudal do País, de Lenin a Sarney. O PT não me decepcionou apenas por seus erro; ele me fez descrente da raça humana.

E vamos combinar: já há uma catástrofe. Queremos não ver, mas a evidência é perturbadora. O País foi metodicamente danificado econômica e socialmente. Eu e provavelmente muitos de vocês leitores não vamos sofrer tanto com a estagflação que vivemos. Agora, os que não lerão esta coluna, milhões de desvalidos, vão sentir na carne o novo estilo para a miséria. Vem aí a nova miséria – um “arrière-goût”, um toque de... África e Índia. Sim.

A miséria era o grande capital do governo Lula. O PT sempre teve ciúmes da miséria. Sempre que o FHC tentou cuidar da miséria, o PT reagiu como um marido enganado.

Antes, havia uma miséria “boa”, controlável. Tínhamos pena, ela aplacava nossa consciência, desde que ficasse no seu lugar. A miséria tinha uma “função social”.

Achávamos que nosso escândalo ajudava os pobres, de alguma forma. Para nós, pequenos burgueses, a miséria era bandeira abstrata, a miséria dos outros era nosso problema existencial. O fim das ilusões gerou um desalento que dá lugar a um alívio quase feliz.

A situação é gravíssima e ninguém sabe como revertê-la. Como imaginar esse Congresso sujo, aprovando reformas e ajustes contra o atraso, justamente eles que desejam o atraso, tão propício a roubalheiras mais tradicionais? O escândalo foi desmoralizado – estamos sendo arrasados pela “normalidade”. Isso. Estamos nos acostumando a essa anomalia e vamos aceitando a crescente desgraça com fatalismo ou cinismo: tinha que ser assim ou dane-se...

E, aí, surge a turma do “precisamos”, da qual eu faço parte, tristemente. “Precisamos” disso, daquilo, mas ninguém sabe como resolver. Não temos agentes executores da política do “precisamos”.

“Precisamos” resolver o problema da administração nos Estados e municípios, que já estão sem verbas para pagar os funcionários públicos, os hospitais sem remédio, os limpa fossas, sei lá. “Precisamos” combater a violência, mas nada funciona para impedir o crime crescente. A polícia não tem dinheiro. Os criminosos têm grana para comprar até canhões antiaéreos no Paraguai. Não é que a violência vai apenas crescer; não há como impedi-la, com traficantes vagando de metralhadora no centro da cidade, estuprando e matando.

Como imaginar um plano possível para salvar e melhorar as favelas no Rio ou Recife ou em Alagoas, em todas as cidades principais, para além das UPPs? O que fazer? Cartas para a redação.

Esta crise é especial, talvez invencível.

Em geral, as crises surgem, acontecem e, quase sempre, somem. Acabam. Até a terrível ditadura tinha um fim previsível, mas, depois de 12 anos de absurdos do PT, esta crise agora é de areia fina, de areias movediças; ela talvez não acabe, pois não tem um defeito único a combater – é uma miscelânea de crimes históricos. A crise não tem um inimigo só – é um ramalhete de equívocos.

A miséria é a ponta suja de uma miséria maior. Nós fazemos parte dela. O Brasil está contaminado de misérias. Não existe um mundo limpo e outro sujo. Um infecta o outro.

A burocracia é miséria, a corrupção é miséria, a estupidez brasileira é miséria. A miséria não está nas periferias e favelas; está no centro da vida brasileira.

Somos uns miseráveis cercados de miseráveis por todos os lados.

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