- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O escritor e membro da Academia Brasileira de Letras João Ubaldo Ribeiro colecionava fotos de placas, avisos e anúncios, disseminados pelo Brasil inteiro, escritos em português vulgar e frequentemente chulo, cheios de erros e indícios de alfabetização precária e educação restrita. Chamava sua coleção de "besteiroteca". Fomos amigos de mensagens durante muitos anos, até o fim de sua vida, desde que nos conhecemos no Júri do Prêmio Casa das Américas, em 1981. Trocávamos mensagens com alguma frequência, na maior parte das vezes sobre isso.
Esses anúncios são evidências de que muitos brasileiros se comunicam apenas no interior dos muros de uma precária fala coloquial. Prisioneiros de um analfabetismo disfarçado, nos escritos errados tentam atravessar a muralha desse confinamento cultural usando insegura colagem de palavras. Por meio dela fingem saber o que não sabem, supondo dizer o que de fato não compreendem. O rabisco da escrita simplória apenas atesta o esforço de copiar de memória formas de um dizer mercantil que é apenas o dos mal chegados ao mundo das mercadorias.
Para reforçar-lhes o gaguejar escrito, nos últimos anos, uma avalanche de palavras inglesas, específicas da comunicação eletrônica, veio complicar ainda mais nossa língua já desfigurada. Escreve-se "site", mas fala-se "saite". "Click", "clicar", "blogar", "deletar", ajustamentos para desenrolar uma língua enrolada vão preenchendo os vazios linguísticos de um mundo novo da fala.
Os divertidos anúncios que João Ubaldo colecionava continuam proliferando. Nestes dias, um amigo me mandou alguns: "Rejuvelhecimento facial: R$ 39,99"; "Pintamos casas a domicílio"; "Pé di Curi e Mão di Curi, R$ 25,00"; "Sem Ti Deiz" (com uma seta indicando uma tomada de energia elétrica); "É proibido esfolear os jornais" (numa banca de jornais); "Barbearia Darcy, corto cabelo e pinto". Neste último caso, uma indicação de que as palavras foram juntadas, mas se mantiveram isoladas no descuido com a significação da frase.
Em 2009, vieram da "besteiroteca" de João Ubaldo: "Bar e Danceteria Owver Naith"; "Servimos suco natural do pó do guaraná A Flor de Ziaco do Amazonas"; "Borracharia e Bicicletaria J-L $> Temos pesas e pineus para sua baig"; "Verdura cem agrotoxio"; "Aviso - Não remova esse aviso - Está aqui porque tem uma finalidade" (aviso oficial numa rua); "Proibido marrar animais" (numa árvore); "Batata 4.00, Sebola 1.50, Méu 4.00, Melansia 3.00, La Ranja 3.00" (na beira de uma estrada). Ainda que remotamente, formas de escrever que lembram um pouco a escrita brasileira do século XVII, quando, porém, havia regras para colocar no papel a língua falada. Colagens de palavras de nexos mal enunciados, que culminam em efeitos de remota intenção barroca. Resíduos de mentalidade nunca consumada, pura expressão de atraso social.
Algumas vezes, em diferentes lugares do Brasil ouvi e anotei frases ditas em estações rodoviárias ou em ônibus. Em Porto Velho uma senhora contava a uma amiga que tinha sido obrigada a "assustar o cheque" que dera a alguém. Para ela, "assustar o cheque" era dar um susto na pessoa que o recebera e descumprira a palavra e a contrapartida do pagamento. O moderno do cheque reduzido ao arcaico do susto.
Mesmo depois de concedido o direito de voto ao analfabeto, o pressuposto de todo o sistema político brasileiro continuou sendo o de que o eleitor brasileiro é corretamente alfabetizado. Isto é, ele se informa politicamente por meio da palavra escrita. A palavra falada está mesquinhamente reduzida ao inessencial, como naquela sucessão de retratos na TV, o candidato dizendo: "Meu nome é Zé dos Anzóis. Pelos direitos dos pescadores de lambari. Meu número é 00000". Ou aquele genial "Vote em Tiririca que pior não fica". O deputado paulista foi o mais votado do país, em 2010, com mais de 1,3 milhão de votos, e arrastou consigo mais três deputados federais. A língua popular elegeu quatro deputados, enquanto a língua formal elegeu apenas um.
Que cidadão resulta dessa alfabetização contorcida em que o pensado está divorciado do escrito? O regime político republicano, no Brasil, foi instituído com base no pressuposto de que o direito de voto estava circunscrito aos alfabetizados. E que a imensa maioria, a dos analfabetos ou semianalfabetos, ficaria na sala de espera do ingresso no elenco dos que têm direito de votar. O que só aconteceria em 1985, quando a concessão do direito de voto aos analfabetos decretou, também, que todos os brasileiros têm igual entendimento das mensagens políticas, faladas ou escritas. Agora já não é o direito ou não direito de voto que separa o povo do poder. É o silêncio de ouvir uma coisa e entender outra.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “O Coração da Pauliceia Ainda Bate” (Ed. Unesp/Imprensa Oficial).
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