É indiscutível a importância histórica da Carta que restabeleceu o estado democrático de direito, mas não se deve esquecer de que ela tornou o Estado maior que o PIB
A Constituição completa 30 anos com o país em crise política e numa recuperação lenta da mais grave recessão (2015/ 16) de que se tem registro. Porque o Brasil de hoje é muito maior e mais complexo que o da Grande Depressão de 29/30, além de terem sido muito graves os erros cometidos.
Ulysses Guimarães, condutor da Constituinte que em 1987 debateu e redigiu a Carta da redemocratização, batizou, com propriedade, a Carta de “Cidadã”. De fato, foi e é a base institucional em que se sustentam a cidadania e a construção de um efetivo estado democrático de direito, e as liberdades democráticas. É a Constituição que abre espaço para a sociedade civil organizada.
A crise, em cujo centro esteve a greve dos caminhoneiros, mas não só, ajuda a que se entenda a Constituição no todo, não apenas nos aspectos político-institucionais. Porque a greve de caminhoneiros e suas reivindicações, atendidas de maneira integral pelo governo Temer, ressaltam outra face da Carta, inspirada no conceito de um Estado tutor, capaz de redistribuir a renda de forma “justa” , coletor de parte crescente da renda da sociedade para redistribuí-la praticando o “bem” .
Um ano depois da promulgação da Constituição, em 1989, caiu o Muro de Berlim e, junto com ele, a filosofia estatista que plasmou a parte econômica e social da Carta brasileira. Daí todos estes anos de necessidade de reformas. Resulta que só a Previdência é metade dos gastos da União, sem considerar despesas financeiras. E os gastos não param de crescer, o que impulsiona a dívida pública rumo aos elevados 80% do PIB e para além.
O presidente José Sarney (1985/90) tinha razão quando alertava que a Constituição (a parte social) não caberia no PIB. Tudo ficou mais complicado porque estes 30 anos reforçaram a cultura varguista, nacional-populista, quando o Estado foi capturado por forças políticas de mesmo pedigree, que tentaram fazer a distribuição da renda em favor dos supostamente pobres, e não se preocuparam com a geração da própria renda. É um modelo fadado à ruína. A debacle da Venezuela bolivariana chavista ensina em tempo real onde é o ponto final deste modelo: ditadura, miséria, crise humanitária.
O desfecho do movimento dos caminhoneiros faz emergir distorções que esta cultura de dependência do Estado incutida na sociedade produz. A impopularidade do governo Temer incentiva o apoio à greve — 87%, segundo o Datafolha —, mas idêntica parcela da população rejeita contribuir com seus impostos para subsidiar o diesel dos caminhões. Grande contradição, que deriva da desinformação sobre a sociedade e o Estado brasileiros.
A Constituição de 88, ao restabelecer as liberdades civis, preservadas ininterruptamente durante estes 30 anos, o mais longo período contínuo de estabilidade institucional na República, permite, felizmente, que discutamos, sem limites, os impasses que a própria Carta cria. Seus louváveis objetivos de redução da pobreza, do acesso universal à saúde, da garantia a todos de uma aposentadoria mínima, mas sem eliminar privilégios, ajudaram a quebrar o Estado tecnicamente. Pois ele é peça central neste “estado de bem-estar” na pobreza. Em algum momento, a inflação voltará para ajustar as contas. Os que apoiam os caminhoneiros, mas não querem pagar parte do diesel que eles consomem, deveriam pensar nisso.
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