- O Globo
Uso do poder para beneficiar grupo religioso é desvio igual a corrupção. O prefeito Marcelo Crivella está tentando agora se salvar do processo de impeachment e pode ser que, com a moeda dos cargos, ele consiga. Se for vitorioso no seu processo de manipulação da Câmara de Vereadores, não deixará de ter cometido crime de responsabilidade. O que ele fez é corrupção, porque usa recursos públicos para oferecer vantagem a um grupo específico, no caso, religioso.
A impressionante revelação feita pela reportagem de Bruno Abbud e Berenice Seara comprova o que já se suspeitava. O uso do poder político para privilegiar o seu grupo religioso. E o faz de forma tão escancarada que choca. Para os outros munícipes ele oferece a espera, a burocracia, as dificuldades, para os evangélicos ali reunidos ele oferece a D. Márcia e o Dr. Rubens, o caminho das facilidades.
— Sem o Dr. Rubens seu processo vai demorar, demorar, demorar — disse ele, referindo-se à isenção de IPTU para igrejas.
A isenção para igrejas é constitucional, mas neste caso ele estava se referindo a imóveis alugados e não próprios. E oferecia uma via expressa. Quem não conhece esse caminho das pedras tem que ver seu processo “demorar, demorar, demorar”:
— Nós temos que aproveitar que Deus nos deu a oportunidade de estar na prefeitura para esses processos andarem.
O uso de Deus para fins políticos é condenável sob todos os aspectos, inclusive religioso, mas o que interessa à gestão pública é que a atitude do prefeito do Rio fere os princípios da República. O poder laico é um dos avanços civilizatórios do Ocidente. Ele foi escolhido pelos eleitores para ser o prefeito de todos, independentemente do credo. A impessoalidade, a igualdade entre os cidadãos, a transparência na distribuição dos recursos públicos, a ampla publicidade da oferta dos serviços, tudo isso foi ferido naquela reunião feita com alguns escolhidos.
Não cabe dúvidas sobre o que aconteceu naquele “Café da Comunhão”. O prefeito acha normal convidar seus amigos e dizer que eles terão vantagens em relação aos outros cidadãos da cidade na espera para a realização de cirurgias de catarata, varizes, vasectomia, solução para problemas tributários, e acesso a quebra-molas, sinais de trânsito e pontos de ônibus.
Crivella pediu para todos ficarem de olhos abertos para “vigiar a corrupção”. Bastava abrir os olhos naquela sala. Ali estava acontecendo exatamente um ato explícito de desvio de recursos públicos para atender a um grupo privilegiado, no caso, os que pertencem às igrejas ali representadas.
Qualquer que seja a religião do governante, é absolutamente inaceitável que os que comungam a sua mesma fé tenham qualquer tipo de vantagem. O prefeito se defendeu dizendo que estava divulgando os programas da área da saúde como o mutirão da catarata ou das varizes. Ótimo que ele faça esses mutirões. Mas a divulgação teria que ser ampla e não para um grupo fechado, escolhido por qualquer critério que seja, e além disso recebendo uma senha especial, “a Dona Márcia”. Só aqueles que falassem com a Dona Márcia é que teriam a vantagem de esperar apenas uma semana ou duas para a realização da cirurgia.
“Nós temos que mudar esse país”, conclamou o prefeito na reunião, sustentando a tese de que só o “povo evangélico” pode fazer isso. Ele estava exatamente confirmando o pior que existe neste momento de desvirtuamento da política brasileira. Ao oferecer aquelas vantagens para alguns e por esse motivo, ele confirmava o que tem ocorrido de mais lesivo no país. “Não importa se vai ser um trauma no princípio, se as pessoas vão reclamar, criticar”, disse ele referindo-se à ascensão política daquele grupo. Ou seja, não é religião, é projeto de poder.
A Constituição proíbe tratamento discriminatório seja qual for o motivo, inclusive religioso. Pessoa de qualquer religião pode almejar o poder no Brasil, mas não é correto que o busque para distribuir vantagens para seu grupo. É tão absurdo quanto distribuí-las para os amigos, a família, os do mesmo partido. Além disso, o prefeito usou espaço público para pedir votos para um candidato. O prefeito se diz vítima de intolerância religiosa. É uma desculpa fácil para acobertar um comportamento inaceitável.
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