Por Vandson Lima | Valor Econômico
VITÓRIA - "O maior déficit do Brasil não é fiscal. É de liderança." O governador do Espírito Santo Paulo Hartung, que está deixando a política institucional, diz que vai dedicar seus próximos anos "a formar gente". Quer trabalhar pelo surgimento de novas lideranças políticas e discutir a reorganização do centro democrático, jogado à margem nas eleições de 2018.
É em torno de Hartung que têm circulado personagens e ideias, tanto liberais quanto progressistas, que miram o futuro da política brasileira. É a ele quem recorrem tanto o apresentador de TV Luciano Huck quanto o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, passando pelo partido Novo e pelo PSDB, do qual já fez parte. Hartung desfiliou-se do MDB.
Sobre a formação de um novo partido que agregue as forças de centro, Hartung diz que não se pode ficar "obcecado" por essa ideia. É preciso, antes de tudo, formar pensamento e gente nova. Ele aponta as eleições municipais de 2020 como prazo para essa reorganização e defende fortemente a entrada de novos atores como Huck e Barbosa, seus interlocutores, neste jogo. "Fora da política temos dois bons nomes. Joaquim é um bom nome. Luciano é ótimo nome. Quando foram testados em pesquisas isso ficou claro. O que estiver ao meu alcance, quero ajudar nesse campo."
Nesta entrevista ao Valor, Hartung aponta o oportunismo do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff como grande fator de desarticulação do centro democrático, que acabou levando à eleição de Jair Bolsonaro este ano. "De um lado, essa pressa, esse oportunismo levou partidos como o PSDB a uma postura irresponsável, anti-democrática. Já o PT, que tinha com Dilma uma agenda derrotada, condenada, que seria forçado a uma autocrítica, ficou vitimizado. Abriu-se o espaço". Hartung recebeu a reportagem em seu gabinete, no Palácio do Anchieta, sede do governo.
Veja os principais trechos da conversa.
Valor: O senhor vai deixar a política em definitivo?
Paulo Hartung: Um pedaço grande da minha decisão tem a ver com o momento que vivem as instituições políticas no Brasil. Entramos num sombreamento gravíssimo, uma crise na democracia representativa. O formato que tínhamos da democracia representativa não dá mais conta desse mundo, precisamos entender isso e mudar nossa atuação.
Valor: Onde o senhor estará nos próximos quatro anos?
Hartung: Eu estou me propondo a esse ativismo. O centro político tem um papel muito grande para desmontar essa corda que está esticada. Eu não acho ruim que a direita esteja organizada no país. Ela precisa ter representação, botar suas ideias na mesa, vir para o debate. Eu quero ajudar a debater a reorganização do centro e, principalmente, ajudar a formar novas lideranças.
Valor: Por que esse centro não conseguiu dialogar com as pessoas em 2018? Ficou irrelevante?
Hartung: Essa geração, que é a minha, de FHC e de Lula, obteve muitas vitórias da redemocratização para cá. Avanços enormes de política pública: a saúde pública melhorou em 30 anos de SUS. Melhorou a educação com o Fundef em FHC e Fundeb com Lula. Tem problemas, óbvio, mas teve avanços consideráveis com PSDB e PT sim. E cometeu erros graves e é preciso entendê-los.
Valor: Quais?
Hartung: A confusão do PT do público com o privado é seu pecado mais grave. Do PSDB, foi fazer um debate ralo em 2014 e esse oportunismo de sair com uma posição anti-democrática, de não reconhecer o resultado das urnas. Depois se misturou ao baixo clero do Congresso nas pautas bombas e foi tolerante com o Temer na denúncia da JBS.
Valor: O impeachment foi erro?
Hartung: O impeachment foi um erro. Eu tinha visão clara de que isso ia confundir as pessoas. Tinha um governo legítimo ali, errando, mas eleito pelo povo. Tinha que esperar as próximas eleições. Os erros do PT estavam claros. Era um pensamento derrotado. Só que o impeachment pegou um filho feio, que tinha pai e mãe, e deu na mão de outro, que passou no cartório e registrou. E esse foi o Michel Temer.
Valor: O impeachment então abriu espaço para Bolsonaro?
Hartung: Abriu espaço. De um lado, essa pressa, esse oportunismo do impeachment desarticulou o centro. Do outro o PT, que tinha com Dilma uma agenda condenada, que seria forçado a uma autocrítica, ganhou espaço para voltar sem fazer o mea culpa. A eleição virou uma disputa simplória entre petistas e anti-petistas. E o centro da política, esse pensamento que perpassa os liberais reformistas da economia e os progressistas, que tentam romper com a desigualdade social, esse centro político que tem a minha centro-esquerda e liberais que podem ser nossos parceiros não conseguiu dialogar.
Valor: Mas na época era possível antever isso?
Hartung: Não quero ser engenheiro de obra pronta. Mas pode procurar, eu falava há dois anos: do jeito que estava indo, só ia sobrar na eleição quem fizesse bravata ou vendesse terreno na lua. A eleição não discutiu o país. Era um prometendo botijão de gás e outro 13º para Bolsa Família. Enquanto isso a gente fazendo déficit de R$ 150 bilhões todo ano.
Valor: O que fazer agora?
Hartung: Primeiro, essas forças, como o PSDB, deveriam vir a público explicitar seus erros. O resultado foi essa polarização irracional que vivemos na eleição presidencial. Quanto ao novo governo, torço para que acerte a mão. De verdade. Mas não sei se vai acertar, se terá capacidade de montar agora os projetos que ele não apresentou na campanha.
Não há proposta para a Previdência. Quando entra no assunto, é um bate-cabeça. E é um problema central. Como governador, te digo que se acertarem a mão, vai vir muito dinheiro, nacional e internacional, para o Brasil. Se errarem, vamos para o buraco mais rápido e fundo do que os analistas estão imaginando.
• "Estou me propondo a esse ativismo. O centro tem um papel muito grande para desmontar essa corda esticada''
Valor: Como deve atuar o centro no governo Bolsonaro?
Hartung: É tensionar o tempo todo para produzir propostas, ideias. Não pode ser oposição sistemática porque o país não vai aguentar. Se o Paulo Guedes tiver uma boa proposta da Previdência, vamos todos apoiar, senão o país quebra mesmo.
Valor: Apoiar?
Hartung: Se tiver uma fresta para que o país transforme essa pequena euforia em algo, precisamos dar suporte. Aqui mesmo no Espírito Santo já começam a aparecer investimentos. É uma bolha e sabemos que é uma bolha, mas veja: na Argentina, Macri derrotou o peronismo, criou essa euforia, mas não fez o que precisava a tempo. Agora, o avião caiu e de bico.
Valor: Mas o centro vai então fortalecer o governo Bolsonaro?
Hartung: A questão é empurrar o país para a agenda certa. No primeiro governo do Lula aconteceu isso. Teve o boom das commodities que ajudou, mas pegou um governo organizado e não negou isso. Sem paixão, tendo autocrítica, funciona.
Valor: É hora de um novo partido de centro?
Hartung: Quem pensar em 2022 agora, para mim, está pensando em nada. Temos que tensionar o governo para que ao menos parte das propostas necessárias ao equacionamento brasileiro sejam colocadas na mesa. Pode-se sim discutir alternativas. Não pode é ficar parado, torcendo para dar errado e chegar 2022. O país não aguenta.
Valor: Os tucanos partilham dessa sua tese?
Hartung: Converso com Fernando Henrique, Tasso. Temos falado muito no sentido de, antes de buscar saídas, fazer um diagnóstico correto, com coragem de encarar os erros. O erro já vinha desde a campanha de 2014, onde o PSDB perdeu perdendo, fazendo debate raso. Depois errou com o impeachment e na postura com o governo Temer. Se não entender o problema agora, não adianta pensar em grandes mudanças, novos partidos.
Valor: Mas se o governo der errado, não vai ser tarde se o centro não se reorganizar logo?
Hartung: A hipótese de o governo embicar para baixo existe. Há uma combinação perigosa ali de inexperiência, pouco conhecimento da máquina pública e certa dificuldade de conviver com o parlamento e as instituições. A organização do centro político vai se dar na evolução disso.
Valor: Não fica tarde?
Hartung: A coisa que mais ouvi na campanha americana foi que o presidente Donald Trump ia passar o trator. A tese de que a economia americana rodando bem resolveria tudo não encaixou. A economia deles está bem. E a eleição não foi tão boa para ele. Trump andou, fez campanha. E perdeu a maioria na Câmara. O que os Democratas fizeram de tão brilhante? Ficaram batendo cabeça um tempo e num momento acertaram a agenda.
Valor: Há um tempo para isso?
Hartung: É como se nós do centro fossemos acertar o passo na reta final da campanha municipal de 2020. A gente não pode ficar obcecado achando que a solução é fundar imediatamente um novo partido. Primeiro precisa ter as propostas. Em 2014, a solução simplória foi o impeachment. Deu no que deu.
Valor: Qual a chave da equação?
Hartung: O maior déficit do país não é fiscal. É de liderança. É preciso, antes de tudo, formar pensamento e gente nova. Mexer com questão partidária nesse momento é mexer com energia boa no lugar errado.
Valor: Faltam cabeças?
Hartung: Com certeza. Mais do que pensar em partido político, é preciso formar lideranças no país. É um problema geracional grave. As lideranças atuais foram essencialmente formadas em dois momentos. Uma por volta de 1964. Outra é a minha geração, que lutou pela redemocratização. Depois disso, é ralo o processo de formação de lideranças do país. Esse é o trabalho que precisamos fazer. Gente treinada, qualificada para convencer a sociedade dos bons caminhos e trazer à luz as boas ideias. Pessoas com noção do interesse público.
Valor: Os partidos não deveriam fazer essa função?
Hartung: Os partidos falharam nisso, ignoraram essa necessidade. Não sei como poderão fazer agora. Os movimentos civis podem ser o caminho.
Valor: O senhor tem sido um ponto de convergência. Conversa com tucanos, progressistas, movimentos e até com pretendentes, como o Luciano Huck. Qual o plano dele?
Hartung: Eu conheci o Luciano em um jantar na casa do Armínio Fraga. Fiquei absolutamente bem impressionado com ele, com sua reflexão sobre o Brasil. Achei muito positivo. Depois que estive com ele, saiu uma pesquisa presidencial que mostrava que o nome dele tinha força no país. A decisão dele de não disputar foi pessoal, ouviu a família. Não foi para a disputa, mas continuou nos movimentos cívicos, formando gente, ajudando a empurrar bons quadros para a disputa eleitoral. Depois da eleição, ele disse 'quero continuar ajudando'.
• "O impeachment foi um erro. Tinha um governo legítimo ali, errando, mas eleito. Tinha que esperar a próxima eleição''
Valor: Mas trazer celebridades para a arena política não é estimular esse culto ao indivíduo?
Hartung: Acredito na política como ferramenta transformadora. É o caminho por onde se sai da violência para o diálogo. Acho muito positiva essa trajetória do Luciano. Tem que trazer todo mundo para a discussão política, sem preconceito. A política precisa de mais Lucianos, mais Joaquins Barbosa.
Valor: Joaquim Barbosa e Huck não terem concorrido ajudou na eleição de Jair Bolsonaro?
Hartung: Depende. Qual o impacto que teve o atentado a faca ao Bolsonaro? Alguém terá de estudar isso. Mas sempre achei que se um dos dois fosse nosso candidato a presidente, e por isso apoiei que viesse um nome de fora para disputar - e tomei muita pancada por isso -, ia surpreender. A eleição era propícia a alguém fora da política que tivesse uma boa agenda para o país.
Valor: Barbosa e Huck são nomes para o futuro?
Hartung: Agora é seguir essa dinâmica. Fora da política temos dois bons nomes. Joaquim é um bom nome. Luciano é ótimo nome. Quando foram testados em pesquisas e isso ficou claro. O que estiver ao meu alcance, quero ajudar nesse campo.
Valor: E o Novo?
Hartung: Sou muito amigo do [ex-técnico de vôlei] Bernardinho. Ele veio aqui discutir comigo a candidatura dele ao governo do Rio. Eu estimulei. Mas na hora que ele foi discutir com a família, ele encontrou resistências.
Valor: Essa resistência familiar é algo comum a estes personagens?
Hartung: Com a política no Brasil vivendo o sombreamento que está, quem te ama não quer que você saia de uma vida profissional bem-sucedida e vá para a política. Minha família mesmo não queria que eu voltasse ao governo em 2014. Trabalharam para me convencer a não voltar. Isso aconteceu com eles também.
Valor: O senhor foi sondado para ser candidato ao governo do Rio?
Hartung: Sim, fui sondado pelo Armínio e um grupo de amigos. Um gesto tocante, mas não acho uma coisa boa você trocar de domicílio para disputar eleição. Sei que muitos já fizeram isso, mas o Rio precisa ser solucionado pelas lideranças cariocas. Há uma cultura política local que precisa ser respeitada.
Valor: O senhor fez um governo bem avaliado, reeleição quase certa, mas decidiu não concorrer, não lançar um sucessor e deixar o próprio partido e a política. Por que?
Hartung: Em 2010 eu já estava refletindo que era a hora de parar. Terminei um governo com a melhor avaliação do país e não quis concorrer ao Senado novamente. Fui para a iniciativa privada, mas em 2014 disputei o governo de novo porque o Estado estava numa situação ruim. Comecei muito novo, fui três vezes governador. Cumpri oito mandatos. Fico feliz de parar em uma hora de reconhecimento.
Valor: O senhor não quis nem indicar sucessor?
Hartung: Não surgiu. Poderia ter surgido da minha equipe? Sim. Alguns foram estimulados. O vice-governador mesmo, mas não se viu com tamanho para enfrentar. Secretários chegaram a pensar, mas recuaram. Essas coisas acontecem na política, não desabrochou nome. Então, não ia apoiar uma campanha com a qual não tinha identidade. Preferi me dedicar a terminar o governo.
Valor: Como vê a situação do ex-presidente Lula?
Hartung: É um grande líder que cometeu erros. Conseguiu conduzir com maestria um bom pedaço dessa campanha. Isso é indiscutível. Ganhou um tamanho como candidato, mesmo preso, e teve essa capacidade de passar prestígio para o substituto, algo engenhoso. Quem acompanha política não tem como não avaliar isso. Num segundo momento, perdeu a capacidade de conduzir, talvez por vaidade. A campanha não evoluiu de algo que agregasse o PT para algo que se unisse a outras forças políticas para ganhar a eleição.
Valor: Falar de risco à democracia representativa...
Hartung: Não era suficiente. Tinha que mudar o programa, que claramente não tinha força para ganhar o segundo turno sem se somar a outras agendas. Deveriam ter feito um movimento agregador antes de virar para o segundo turno. Mas fizeram uma conformação de PT com PT.
Valor: O senhor é muito envolvido com o tema da Educação. Como vê o projeto Escola sem partido?
Hartung: Isso é um equívoco. Se posso dar uma contribuição ao futuro governo, diria: não percam tempo com pautas laterais. O desafio é consertar as contas públicas e modernizar o país. Se gastar energia com perfumaria, vai perder o foco, e o tempo num governo passa muito rápido. Quer ver coisa boa em educação? Olhe o que estão fazendo o Todos pela Educação, o Instituto Unibanco com o Jovem de Futuro, o Instituto Sonho Grande, Natura, ali está a pista para melhorar a educação do país. Eles têm pesquisas robustas sobre temas dos mais complexos aos mais pontuais, como escolher diretor de escola. O diretor é um líder. É decisivo nos resultados. Aí está a chave. Não é com Escola sem Partido que vamos avançar.
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