Especialista em relações internacionais Bertrand Badie afirma que fenômeno atinge países muitos diferentes ao mesmo tempo
Por Helena Celestino | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
"O populismo não descreve regime nem doutrina, mas uma situação de crise profunda, de falta de confiança entre o povo e instituições"
RIO - Os ex-alunos de Bertrand Badie são onipresentes no Quai d'Orsay, a maneira como os íntimos tratam o Ministério das Relações Exteriores da França. Alguns estão em postos com altas responsabilidades políticas e muitos foram parar nas redações de jornais ou em influentes "think tanks" da Europa. Especialista em relações internacionais, professor-estrela do Instituto de Estudos Políticos de Paris, a prestigiada Sciences Po, Badie tem uma dúzia de livros escritos e dirige há dez anos uma obra coletiva em que anualmente intelectuais fazem um diagnóstico sobre o estado do mundo. "A volta dos populismos" foi a capa de "L'Etat du Monde 2019", tema considerado por todos como o grande fenômeno político da atualidade.
"Pela primeira vez na história do mundo, tantos e tão diferentes países vivem um mesmo fenômeno político. É único, o populismo tornou-se quase universal", diz Badie, de 68 anos. Na análise do professor, são populistas o presidente dos EUA, Donald Trump, assim como o da Rússia, Vladimir Putin, e o brasileiro Jair Bolsonaro. Também o são os governos escandinavos, da Itália e das Filipinas. E ainda estão nessa lista, por exemplo, o partido de esquerda La France Insoumise, de Jean-Luc Mélenchon, assim como o de extrema-direita Rassemblement National (ex- Front National), de Marine Le Pen.
O populismo, explica Badie, é uma onda que vai e volta desde o século XIX: estamos agora vivendo a quarta dessas vagas; a mais dramática foi entre as duas guerras mundiais, com o aparecimento do fascismo e do nazismo. "O populismo não descreve nem um regime nem uma doutrina, mas uma situação de crise profunda, de falta de confiança entre o povo e suas instituições", diz o professor.
Filho de imigrantes persas - ele se recusa a dizer Irã -, Badie jamais voltou ao país de seus pais depois da revolução dos aiatolás. Formado politicamente nos protestos de Maio de 68, ele agora vê aparecer nos protestos, pela primeira vez, a bandeira francesa, empunhada ao som da "La Marseillaise". "Esta é a marca dos protestos dos coletes amarelos. Para nós, é profundamente novo isso. Há um século, quando há contestação social, é sempre empunhada a bandeira vermelha, e não a tricolor [azul, vermelha e branco]. É sempre ao som da 'Internacional', e jamais ao da 'Marseillaise'. Isso mostra a ruptura muito profunda. É a direitização da contestação social", constata.
O movimento dos coletes amarelos, cuja base é a classe média baixa do interior da França, há três meses faz manifestações todos os sábados contra o governo Macron e as elites globalizadas.
Valor: A volta dos populismos é o fenômeno mais importante de 2019? Ou da próxima década?
Bertrand Badie: Pela primeira vez na história do mundo, um fenômeno político atinge ao mesmo tempo países tão diferentes quanto Estados Unidos, os da Europa Ocidental, o Brasil, a Turquia, muitos países do Norte, do Sul, do Leste e Oeste. É uma coisa única, um fenômeno quase universal. Estamos na quarta etapa do populismo: a história do mundo é ritmada por sequências populistas, a primeira no fim do século XIX, a segunda entre as duas guerras, a terceira em alguns países do Sul depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945], e agora estamos na quarta fase, ou seja, tem também um elemento histórico. O populismo traz uma contradição extremamente forte com a globalização - populismo e globalização são como a água e o fogo, uma contradição que pode prejudicar a globalização e levar o populismo a um impasse, ou seja, a uma incapacidade de gerir a política.
Valor: Os populismos trazem junto o crescimento do nacionalismo e da extrema-direita ao redor do mundo, certo?
Badie: Exato. A ligação é íntima. A esquerda não soube oferecer uma perspectiva moderna sobre a globalização. Então, todo o debate foi levado entre uma direita globalizada e liberal versus uma direita nacionalista e hostil à globalização. A esquerda, quase em todos os lugares do mundo, ficou fora da corrida
Valor: Quais são as características comuns a todos esses governos populistas? Eles são muito diferentes, não?
Badie: Sim, porque populismo não descreve nem um regime nem uma doutrina, mas uma situação de crise, de falta de confiança entre o povo e suas instituições. Essa situação leva a métodos de mobilização idênticos, tem sempre a personalização da liderança política, a mobilização da população e uma forte estratégia de comunicação de massa. Mas, depois disso, as fórmulas são enormemente diferentes. No mundo ocidental, vemos poucos populismos de esquerda, como por exemplo o France Insoumise e alguns partidos na Escandinávia. Mas a maioria deles é de direita, muito liberais, como o do presidente Jair Bolsonaro ou como o governo da Áustria, liderado por um partido populista que é ultraliberal. Ou Trump nos Estados Unidos. Além disso, vemos populismos que aceitam o jogo democrático e outros extremamente autoritários, como Vladimir Putin, na Rússia, e Erdogan, na Turquia. Mas todos eles têm em comum o fato de exagerar o peso da nação no contexto da globalização.
Valor: O senhor acha que o populismo é um risco para os valores democráticos?
Badie: Incontestavelmente. A raiz do populismo é uma desconfiança em relação às instituições, o que se traduz em uma marginalização das instituições da democracia a favor do que chamamos de democracia direta, uma ligação direta entre o povo e o líder. Efetivamente isso se traduz, em todos os lugares, por um desprezo pelo parlamento, uma hostilidade contra as mídias, acusadas sempre de complô. É só olhar os EUA, onde Trump está sempre em guerra com o Congresso e a CNN ou o "Washington Post". Essa atitude contra as instituições cria prejuízos à democracia, já que ela só existe por meio do respeito às instituições.
Valor: Além dos EUA, em que países o senhor está pensando ao dizer isso?
Badie: É preciso ser honesto. Muitos desses governos chegaram ao poder com eleições. Na Itália ninguém pode contestar o processo pelo qual [os vice-primeiros-ministros] Matteo Salvini e Luigi Di Maio chegaram ao poder, a partir de um respeito à democracia. Mas é próprio dos populismos considerar o povo e a nação como bens superiores; a democracia é vista como um valor secundário. Os populistas não respeitam a gramática democrática, isso é verdade em todos os lugares, seja na Rússia de Putin, seja no Brasil atualmente. Mas é preciso diferenciar entre os que chegaram ao poder democraticamente e os que usaram a força e a pressão para isso.
Valor: O senhor atribui essa virada populista à crise econômica de 2008 ou a algo mais profundo, como a uma crise de civilização?
Badie: Não gosto da expressão "crise de civilização", é imprecisa. O afastamento entre o povo e as instituições é causado pelo sentimento de que elas são ineficazes porque não funcionam democraticamente ou porque são incapazes de proteger o cidadão. É um fenômeno novo que se traduz numa crítica global às elites, às instituições e aos políticos. Na base de todo populismo existe sempre o mesmo fator essencial, o medo. Estamos com medo e achamos que as instituições não são mais capazes de nos proteger. O medo nessa quarta onda populista é o medo da globalização, que se traduz pelo medo da crise econômica, da insegurança econômica, mas também o medo de perder a soberania nacional, o medo do estrangeiro e da imigração, o medo das grandes empresas multinacionais. É a situação de medo do estrangeiro.
Valor: É uma espécie de nova utopia que está sendo criada? É possível conjugar um país fechado ao "estrangeiro" com as tecnologias digitais?
Badie: É pior que uma utopia. A força da utopia é a invenção de um modelo novo - as grandes utopias do século XIX permitiram a invenção do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Agora não é uma utopia, é uma utopia regressiva, que não produz o futuro e tenta se proteger através de uma negação do real e de uma volta ao passado, o que é impossível. É mais uma patologia do que uma utopia. Essa tentativa de gerir o medo através de uma volta ao passado torna esses governos incapazes de gerir a atualidade e se inserir na globalização. Trata-se de uma patologia que agrava a crise em vez de resolvê-la. E vemos bem como a Itália está se afundando numa crise econômica perigosa e, como os EUA quando saem dos acordos multilaterais, se isola cada vez mais do mundo e perde sua capacidade hegemônica. Vemos como o Reino Unido está perdendo suas vantagens no plano mundial por causa do Brexit, outra demonstração de populismo.
Valor: A maioria desses governos populistas é bem recente. Como prevê os próximos movimentos?
Badie: Vejo uma década de muitas dificuldades, o mundo vai pagar caro por essa patologia populista. Mas, a meu ver, ao fim de dez anos, os populistas terão esgotado a sua capacidade política.
Valor: A Europa vive uma fase de grande instabilidade política. Na França, por exemplo, os coletes amarelos estão fazendo balançar o governo Macron. É uma repetição do Maio de 68 com sinais trocados?
Badie: É totalmente diferente, Maio de 68 era a entrada na globalização, era a primeira construção da globalização na França, na Itália, na Alemanha. Havia uma mobilização contra a Guerra do Vietnã, a favor da Palestina; os ídolos eram Mao Tsé-tung e Che Guevara. Era também um movimento progressista, o grande momento da liberação dos comportamentos, da condenação de todos os conservadorismos sobre o aborto, a homossexualidade. Os coletes amarelos são muito conservadores do ponto de vista social, hostis à globalização e à imigração, assim como ao casamento gay, hostis à liberação de costumes.
Valor: Vi um dos coletes amarelos dizer diante do ministro do Meio Ambiente que ele estava preocupado com o fim do mês e o ministro, com o fim do mundo. Como reconciliar esses mundos?
Badie: Esse é um outro aspecto: o pensamento e a política neoliberal deixaram de lado a questão social e favoreceram a questão econômica. Subestimamos a força da ideia de progresso social com que a sociedade europeia foi construída. E, de repente, tornou-se dominante a ideia de que o progresso social viria com o enriquecimento dos mais fortes e mais ricos. Isso criou uma crise social profunda que não se estava percebendo. É preciso repensar a economia de uma maneira social.
Valor: Que marca os coletes amarelos deixarão no governo Macron?
Badie: Ainda é cedo para saber. Eu vejo dois cenários: existe a possibilidade de esse movimento desaparecer e não deixar marcas - isso pode acontecer, já que o movimento é espontâneo, não tem organização nem líderes, e a cada semana são menos 10 mil nas ruas. A outra possibilidade é o governo ser mais atingido do que o previsto e uma crise de verdade instalar-se. A grande incógnita hoje é se o governo Macron conseguirá reagir e governar. Se não, vamos entrar em uma coisa ainda pior, em uma espécie de decomposição do sistema político francês - já não há partido ou líder político forte na França. Esse risco de decomposição política existe, pode vir a acontecer o mesmo que na Itália: com o desaparecimento da democracia cristã e do Partido Comunista, não sobrou nada, e esse vazio foi ocupado por formações extremistas.
Valor: Como Macron acabou com seu capital político em um ano e meio?
Badie: A aposta de Macron foi perigosa: tomar o poder na França sem apoio de um partido político e de um número razoável de homens e mulheres com peso e experiência política. Isso não é possível. Não se pode gerir a sexta economia do mundo a partir de um grupo de amigos e de pessoas que, na sua maioria, não tinha a menor experiência de poder. Nas democracias, quando há crise de autoridade, cabe aos partidos políticos reconstituírem essa autoridade. Macron, quando um ministro sai do governo, precisa de um mês para achar um sucessor. Jamais se viu isso na história francesa. Atualmente, ele está com dificuldades de mostrar que superou a contestação dos coletes amarelos, ele não tem com quem revezar o trabalho de reconectar o governo com a opinião pública. Os deputados que ele elegeu são desconhecidos. Eu, que há 40 anos sou professor de ciência política, não sou capaz de dizer o nome do deputado do meu "arrondissement". São desconhecidos, insignificantes
Valor: O senhor compara o governo Macron com esse início de governo Bolsonaro?
Badie: Não é a mesma coisa. Bolsonaro é um populista verdadeiro. Macron teve um pequeno lado populista quando criticou os partidos e disse que ia mandar embora a velha classe política, mas ele não tem um projeto populista como Bolsonaro. Macron é a favor da globalização, liberal, muito pouco nacionalista. E, em relação aos costumes, ele não é homofóbico, não é racista, não é machista. Felizmente. O equivalente de Bolsonaro na França é Marine Le Pen.
Valor: Estava fazendo referência ã fragilidade do partido e à falta de experiência administrativa das equipes de Bolsonaro e Macron...
Badie: Desse ponto de vista sim, mas não chamaria de semelhança, porque essa espécie de marginalização de políticos experientes em favor de novatos está praticamente generalizada no mundo. Veja Trump nos EUA ou o governo italiano, totalmente inexperientes. Mesmo no Reino Unido, um país conservador, os vencedores do Brexit eram líderes inexperientes, como Nigel Farage [líder do Ukip na época do plebiscito]. Acontece um pouco em todos os lugares do mundo a chegada de gente sem experiência ao poder. É um fenômeno preocupante.
Valor: Todas as dificuldades enfrentadas pelo Reino Unido depois do Brexit, de alguma maneira, acabaram esvaziando o discurso de políticos contra a União Europeia?
Badie: É uma atitude paradoxal, ninguém mais fala em sair da União Europeia. Le Pen não fala, Salvini não fala, todos os eurocéticos pararam de falar em sair do bloco. Mas ninguém fala também na construção da Europa. A primeira foi a associação de Estados para construir a paz e a própria Europa, exangue após a Segunda Guerra Mundial. Tudo isso foi realizado com sucesso, mas aconteceu há 20 anos. A Europa agora precisa de solidariedade entre as sociedades e isso não avançou nada. A crise da imigração mostrou isso. Compreende-se, portanto, a decepção das pessoas. Não faz o menor sentido perguntar aos britânicos se eles querem ficar dentro ou fora da Europa.
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