quarta-feira, 20 de março de 2019

Monica De Bolle*: Os dançarinos

- O Estado de S.Paulo

A postura da Colômbia tem sido a de apoiar Juan Guaidó sem qualquer possibilidade de intervenção militar

Há quem não goste, mas eu adoro as pinturas de Fernando Botero. Meus quadros favoritos do pintor colombiano são os nus, ou melhor, as nuas. Nuas gorduchas de costas, tomando banho, lendo cartas, lendo livros no jardim. Nuas ruivas, nuas louras, nuas castanhas de cabelo encaracolado. Escrevo sobre isso enquanto ainda é possível falar de nudez plástica no Brasil nas páginas dos jornais. Nas redes, a censura dos desinformados e desinteressados por cultura corre solta, sem amarras. Comecei com as mulheres de Botero pois visitei o museu em Bogotá recentemente. Comecei com as nuas de Botero porque elas desafiam o conservadorismo extremado que contaminou o País. Comecei com as nuas, mas na realidade pensava nos dançarinos.

O homem rechonchudo de terno escuro e a mulher ruiva de vestido azul rodopiam no salão nessa outra pintura de Botero que me fez pensar no encontro de ontem entre Trump e Bolsonaro. Bolsonaro em nada se parece com o homem do quadro — ele tem bigode. A mulher até poderia ser versão feminina de Trump, mas não é disso que se trata.

O quadro evoca um encontro, e ontem houve um encontro. Encontro cujo principal objetivo, sob a ótica do mandatário brasileiro, é marcar pontos políticos de curta duração, não alcançar ganhos de médio prazo para o País. Fosse assim, não estaria Bolsonaro jantando com o auto-intitulado líder do “movimento populista-nacionalista” global Steve Bannon que há tempos perdeu o status que teve no atual governo norte-americano. Fosse o objetivo projetar imagem de País sério para o Brasil e para o mundo, não estaria Bolsonaro perdendo tempo com gurus auto-exilados e o filho que se julga acima do chanceler — aquele que tampouco fala coisa com coisa. Bolsonaro está a passeio no mundo de Trump, um mundo que pode terminar em 2020. Com uma eleição presidencial no ano que vem que promete ser ruidosa, estariam os interesses do Brasil mais bem servidos caso Bolsonaro optasse pela neutralidade em lugar da adulação escancarada. Mas cautela não é a marca do líder que o Brasil elegeu em 2018.

Escrevo esse artigo antes do encontro, mas não é segredo que o que Trump quer conversar com Bolsonaro não são assuntos que deixarão o capitão à vontade. O primeiro assunto é a cobrança de uma atitude do Brasil mais alinhavada com a dos EUA em relação à Venezuela. O segundo assunto é a cobrança de uma atitude do Brasil mais alinhavada com a dos EUA em relação à China, e, em particular, à atuação da China na região. Sobre o primeiro tema, Trump já deixou claro que apoia a linha de seu conselheiro para assuntos de segurança nacional, John Bolton. Bolton quer atuação mais agressiva para derrubar Maduro, e busca o apoio do Brasil na empreitada — importante salientar que Bolton não está alinhado com o próprio Departamento de Defesa norte-americano. O Departamento de Defesa, assim como nosso general vice-presidente, prefere a cautela. Há no governo de Trump quem saiba que a liderança dos EUA na derrubada de Maduro significa pagar a conta da transição complicada que virá depois — não sairá barato. O Brasil dos estilhaços fiscais não tem capacidade de contribuir para isso, como bem entendem os generais.

Comecei esse artigo com Botero por simples razão: estou na Colômbia. Aqui tenho tido reuniões com membros do governo de Ivan Duque responsáveis pela questão venezuelana. O contraste com a turma menos informada que cerca Bolsonaro não poderia ser maior. A Colômbia é o país mais afetado da região pela crise venezuelana em inúmeras frentes. Os milhões de refugiados acolhidos já pesam no orçamento e os milhões de refugiados esperados aumentam os riscos do governo Duque nas áreas de segurança, saúde, sustentabilidade fiscal, e sobrevivência política do próprio presidente. No entanto, a postura do governo tem sido a de apoiar Juan Guaidó sem qualquer possibilidade de intervenção militar ou de posturas mais agressivas. Os colombianos entendem de quem seria a fatura caso a remoção de Maduro resultasse não em uma utópica transição estável, mas no mais provável caos que contribuiria para aumentar ainda mais a tragédia humanitária e o drama dos refugiados.

É possível que Bolsonaro saia da dança com Trump sem os pés calejados ou pisados. É até possível que saia com flor no cabelo ou juras de amor, como as que o líder norte-americano fez ao ditador norte-coreano há não tanto tempo. Esse amor será eterno enquanto durar — ou seja, não muito.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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