- Folha de S. Paulo
Fantasma do 'marxismo cultural' autoriza aparelhamento, perseguições e doutrinação de direita
Bolsonaro resolveu retomar o papel de agitador das mídias sociais. Nos últimos dias criticou excessos no Carnaval, atacou jornalistas e acusou a universidade de fazer proselitismo político. A agitação faz parte de uma estratégia de mobilização permanente, que não deixa seus apoiadores pararem para refletir, submetendo-os a um fluxo constante de propaganda.
O que há de comum na estratégia contra a comunidade LGBT no Carnaval, os jornalistas que apuram corrupção no seu governo e os acadêmicos que lecionam na universidade é que, para o bolsonarismo, todos são extremistas em relação aos quais seu conservadorismo seria um centro sensato e equilibrado.
Há uma estratégia dupla de exorbitar e sobrerrepresentar o viés de adversário, enquanto minimiza ou simplesmente faz desaparecer o próprio viés.
O que para a liderança é estratégia má intencionada para gerar alvoroço e confusão, para a base se torna uma espécie de psicose coletiva na qual o consumo excessivo de propaganda faz com que as representações se descolem do real.
Jornalistas tornam-se oposicionistas mal-intencionados que querem derrubar o governo; professores viram propagandistas maliciosos que querem doutrinar a juventude com socialismo e o movimento LGBT e as feministas surgem como ativistas histéricos que querem mudar a identidade e a orientação sexual das crianças.
O caráter ardiloso e insidioso do adversário justificaria a virulência da resposta.
Embora a tese de que professores, ativistas e jornalistas participam de uma conspiração "marxista cultural" seja completamente alucinada, sua resposta é real e concreta. Não existe uma estratégia coordenada da esquerda para aparelhar as instituições, mas a crença de que essa conspiração existe gera uma reação que poderíamos chamar, com alguma ironia, de "gramscismo de direita".
A nova direita no poder passa a praticar o aparelhamento, as perseguições e a doutrinação que atribuía à esquerda. Ela alega, no entanto, que se trata de uma atitude meramente defensiva e que não está fazendo o que condenava no adversário, com sinais invertidos.
Apesar disso, persegue professores de filosofia que ensinam Marx, mas não se importa com aqueles que ensinam religião (desde que sejam cristãos); acusa de partidarismo jornalistas qualificados que investigam corrupção, mas considera neutros e equilibrados sites de notícias amadores e hiperengajados.
Construída em oposição ao fantasma da conspiração marxista, sua visão de mundo é portadora de uma distopia totalitária.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
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