- Valor Econômico
Colocar o Brasil na OCDE é antigo projeto dos neoliberais, que não avança por que custos superam benefícios
Hoje é consensual entre todos os atores que moldam as relações econômicas internacionais que o arranjo multilateral em vigor precisa ser profundamente transformado. Em termos práticos, significa que um novo multilateralismo precisa ser construído. Só não se sabe como.
Para muitos analistas, o problema é causado pela ausência de funcionalidade do próprio sistema multilateral. Às portas do término do primeiro quinto do século XXI, o padrão de comércio é hoje muito transnacionalizado no plano empresarial e muito fragmentado no plano produtivo, envolvendo muito mais do que o mero resultado do encontro entre compradores e vendedores que estão em países diferentes. É, portanto, radicalmente distinto daquele que se visualizava no final do século passado e, por isso, não caberia mais dentro de uma moldura multilateral. Mais eficaz, para esses analistas, seria a construção de uma teia de acordos bilaterais ou, em contextos pertinentes, plurilaterais.
Para outros, o problema central do sistema mundial de comércio é de governança. A Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1994 como recomendação da longa Rodada Uruguai do GATT, não estaria conseguindo responder aos próprios desafios trazidos pelo seu mandato. A conjugação dos problemas de governança trazidos pelos princípios de aplicação uniforme, decisões consensuais e compulsoriedade estrita que pautam a OMC levou ao que Richard Baldwin, já em 2010, denominou de "trindade impossível". O impasse que está levando à virtual interdição do Mecanismo de Solução de Controvérsias é provavelmente a perna mais visível dessas dificuldades.
A despeito de tantas contradições, a OMC ainda é o esteio do atual sistema multilateral de comércio. É importante ter em mente que, mesmo com o fortalecimento dos arranjos plurilaterais em curso, as relações multilaterais seguirão exercendo um papel relevante. Efetivamente, não há qualquer cenário de futuro do comércio em que elas venham a se tornar desprezíveis, até porque as cadeias globais de valor não englobam uma parcela tão grande da corrente de bens transacionados. E, adicionalmente, os acordos regionais de comércio podem até se superpor ao regramento da OMC mas não podem ser feitos a sua revelia.
Mais importante, é que o projeto multilateral que trouxe a OMC até aqui impõe também que se consiga avançar nas outras duas frentes que justificaram a sua criação, ambas, diga-se de passagem, decisivas para os países emergentes: o acesso a mercados e a formulação das regras que governam o comércio. Na primeira frente está a velha pauta herdada da Rodada Uruguai do GATT e ainda não resolvida, como no caso do fim dos subsídios agrícolas praticados pelos países desenvolvidos. Na segunda frente está a nova, e enorme, pauta gerada pelo inter-relacionamento entre os fluxos de bens e os de serviços, investimentos, direitos de propriedade intelectual, baixo carbono e tantos outros. A questão, portanto, não é binária: OMC ou não OMC. É qual OMC!
Até há pouco uma das nações mais ativamente engajadas na construção de uma ordem mundial multilateral, para o Brasil o quadro é ainda mais complicado. O novo governo mostra-se seduzido por promover uma guinada em direção a via bilateral como comprovam os movimentos de alinhamento com os EUA e de aproximação com Israel, dois dos países que, ao menos nas últimas décadas, mostram-se menos comprometidos com o fortalecimento de arranjo institucionais globais apoiado em princípios e regras universais.
Pelo prisma do Ministério da Economia, declarações recentes revelam que embora o objetivo almejado para a política comercial seja de promoção de uma abertura ampla, o processo será gradual. A razão alegada para o gradualismo vem da restrição trazida pela necessidade de sincronizar a abertura com a redução do Custo Brasil, tendo, portanto, origem em um diagnóstico interno, do Brasil para dentro. Contudo, a intenção de abertura gradual não é exatamente compatível com as ações que vem sendo tomadas no âmbito diplomático. Essa inconsistência é bem exemplificada pelas negociações envolvendo a renúncia voluntária do Brasil ao tratamento especial e diferenciado a que faz jus na OMC como pais em desenvolvimento, em troca do apoio dos EUA à candidatura do país para a entrada na OCDE.
A OCDE é um clube de países desenvolvidos que pactuam regras de convivência e algumas benesses entre os seus membros. Colocar o Brasil na OCDE é um antigo projeto de economistas e políticos neoliberais, acalentado desde os tempos da abertura da década de 1990, e que não avança simplesmente por que os custos superam em muito os benefícios. OCDE e OMC tem tanto a ver quanto praticar esportes e ser Flamengo (ou torcer por algum time de futebol). É possível praticar esportes e não ter time, é possível ter time e não praticar esportes, é possível ambos, é possível nenhum.
Para o Brasil, trocar uma posição proeminente longamente construída no palco central do multilateralismo que é a OMC, que engloba mais de 150 países, pelo acesso a uma cartilha de boas práticas de gestão da economia e um verniz no péssimo ambiente de negócios aqui existente que, quem sabe, poderá vir a ser proporcionado pelo pertencimento à OCDE, é desprovido de qualquer sentido.
O novo governo está completando 100 dias sem que medidas palpáveis para enfrentar os dilemas e desafios brasileiros estejam sequer encaminhadas. Nenhuma surpresa. Quando não se sabe para onde se quer ir, todos os caminhos são errados.
*David Kupfer é diretor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ).
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