segunda-feira, 8 de abril de 2019

Cacá Diegues: O que eu queria escrever

- O Globo

O que penso sobre tudo isso hoje é indescritível, difícil de se escrever com sabedoria e sensatez

Eu queria mesmo era escrever sobre o outono molenga em nossa cidade, um outono de ventos suaves e cajás-mirins caindo dos pés. Queria escrever sobre a reconciliação do tempo com o Rio, a alegria discreta de pássaros que andavam sufocados pelo calor e pelas chuvas volumosas do verão, enquanto torcíamos para que as águas de março passassem depressa, embora precisássemos encher nossos reservatórios vazios. Escrever sobre o céu claro, um azul sem escândalo, enquanto os tiroteios seguem alarmando os bairros da cidade.

Ou talvez escrever sobre a estátua do Cristo instalada no Pico do Corcovado, o ponto mais alto do Maciço da Tijuca, a olhar na direção do nascer do sol sobre a Baía de Guanabara, com os braços abertos, de modo que os sovacos pudessem proteger cada uma das zonas geográficas da cidade, a do sul e a do norte. Há alguns anos, numa terça-feira gorda, cansados de festa, eu e meu amigo Corélio subimos aquele morro para tentar descobrir se o gesto em cruz era para preparar um abraço na população carioca pelo carnaval que passou. Ou se o filho de Deus se aprontava para mergulhar na baía, como eu fazia em Maceió, pulando do píer cheio de navios para o mar. O Cristo do Corcovado talvez quisesse sumir de vez. Ou se distrair nadando.

Para ser mais atual, poderia falar dos gêmeos univitelinos que, no interior paulista, namoravam uma mesma moça que um dia acordou grávida. Só um deles a havia possuído. E como ela, devido à semelhança entre os gêmeos, não sabia distinguir qual dos dois, o juiz, com quem foi parar o caso, pediu um teste de DNA. O teste revelou que os gêmeos tinham o mesmíssimo DNA, como era de se esperar. Agora, só os dois sabem quem é o pai da criança, mas por nada desse mundo entregam a verdade. Imagino que o irmão que é, de fato, o pai não deseja deixar mal o outro que, por incompetência ou razão inconfessável, não dormiu com a moça. O inocente, por sua vez, não deseja agravar a vida do irmão culpado. O juiz decidiu então que os dois vão dividir a pensão da mãe e os custos da criança. Eles aceitaram o veredito, sem contestação.

Ou lembrar que, no carnaval passado, o prefeito de Camaragibe, em Pernambuco, obrigou seus servidores a acompanhar, num bloco de rua, o show de uma cantora que vinha a ser sua noiva querida. Mas, cordato e compreensivo, o prefeito liberou os servidores para, depois do show, abandonarem o bloco. Afinal de contas, segundo ele, “ninguém é obrigado a gostar de carnaval”. Tem tanta coisa para escrever, sobretudo sobre essas modas novas. Tem a história de que a Terra é plana, a de que os dinossauros são uma invenção de cientistas para enganar os trouxas, que os meninos e meninas mortos nos massacres em escolas não passam de atores, que os negros vindos da África eram os responsáveis por sua própria escravidão, que a mudança climática é conversa fiada de negocistas, que o golpe de 1964 inaugurou uma “democracia de força”, que o nazismo era de esquerda, que os comunistas comiam criancinhas torradas no Kremlin, mas que Mao Tsé-Tung as preferia cozidas, que Hitler era amigo de infância de Churchill e resolveu torná-lo herói da Inglaterra para melhorar de vida.

E ainda queria dizer que, nesta cidade que o próprio prefeito, o cara responsável por ela, chama de uma “esculhambação completa”, existe um lugar chamado Templo da Magia, numa esquina da Praia do Flamengo. Fico cheio de emoção e orgulho por morar nesta cidade, ao ver a enorme faixa vermelha na varanda superior do sobrado reformado, onde se lê o nome do lugar e, logo abaixo, em letras menores, o anúncio: “Trazemos seu amor a seus pés, com búzios e tarô”. E depois: “Não cobramos nada, só trabalhamos”. Esta cidade não vai se acabar nunca. Nem por chuva, nem por fuzil.
Mas eu sei que os leitores ansiosos não querem saber de nada disso. Eles querem é notícia do rei, do imperador, do Papa e do presidente, para saber quem é o culpado de sua tanta infelicidade. E eles têm razão. Querem saber de mim e de quem chegar o que pensamos de todos esses personagens, ações e acontecimentos. Quanto a mim, o que penso sobre tudo isso hoje é indescritível, difícil de se escrever com sabedoria e sensatez. Talvez não se escreva em português. Ou em língua nenhuma existente num mundo que seja ao menos razoável.

Penso na cidade onde moro há tantos anos, como se aqui tivesse nascido, e que amo e curto desde sempre. Vejo-a como seu patrono, São Sebastião, flechada de todas as partes. E fico pensando em como arrancar essas flechas de seu corpo ferido, tirá-las do peito de Sebastião.

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