quinta-feira, 4 de julho de 2019

Gilles Lapouge: A reinvenção da Europa

- O Estado de S. Paulo

Para recolocar em marcha a UE foram necessárias negociações intermináveis

A União Europeia, incapaz de nomear um novo governo, estava com sua saúde abalada na manhã desta quarta-feira. Mas, à noite, estava salva, entusiasmada, um pouco como a Fênix, ave da mitologia grega que tinha o estranho dom de se transformar numa ave de fogo, de tempos em tempos, para depois renascer das cinzas.

A nova Comissão Europeia aparenta confiança. Conseguiu respeitar a complicada regra da “paridade”, nomeando para os dois postos mais elevados duas mulheres: na chefia da Comissão (o equivalente à primeira-ministra) está agora a alemã Ursula von der Leyen, uma senhora mãe de seis filhos, poliglota, francófila. Para a presidência do Banco Central Europeu (BCE), a francesa Christine Lagarde (antes diretora do Fundo Monetário Internacional).
Esta não é a única surpresa: essas decisões só foram adotadas graças à harmonia reconstituída de dois pesos-pesados da União Europeia: França e Alemanha, que estava em ponto morto havia meses. E indicam também que as relações entre Emmanuel Macron e Angela Merkel, glaciais e quase descorteses havia algum tempo, milagrosamente ficaram mais calorosas.

Macron, com índices de aprovação em queda desde o ano passado, parece ter reencontrado sua “boa estrela”: há um mês, sua popularidade na França parou de desmoronar. E, no plano internacional, ele retoma o controle dessa União Europeia tão criticada há meses que ele sempre desejou tornar uma alavanca da sua glória mundial.

Angela Merkel também faz um “retorno” surpreendente. Muito criticada na Alemanha depois de 12 anos de poder incontestado, com as pessoas achando que ela havia entrado no seu crepúsculo, conseguiu duas proezas: salvar a União Europeia e mostrar que o motor franco-alemão, que todos davam como morto, voltou a funcionar.

Esse motor regenerado está impaciente para transportar, para todos os lados, o comboio pesado, cansado, envelhecido, heterogêneo e indócil que é a União Europeia. Mais do que nunca, Merkel faz jus ao slogan que lhe foi aplicado na época do seu esplendor: “A política é um esporte complexo. Dezenas de homens correm atrás de uma bola durante alguns dias e, no final, é Merkel quem vence.”

É o caso de afirmar que “tudo é para o melhor na melhor das Europas?” Claro de não. Para se chegar a esse feliz resultado foram necessárias longas negociações, obter o acordo dos 28 membros da UE – alguns rigorosos, outros frívolos ou desatentos, uns do Sul, outros do Norte. E em todos os lados, antagonismos.

Os interesses, os costumes, as filosofias, se contradizem. Alguns países são minúsculos. Outros, enormes. Há os que temem a Rússia e os que não. Há ricos e pobres, democratas e autoritários, globalistas e protecionistas. Assim, a União Europeia reuniu e levou ao máximo todos os defeitos dos regimes parlamentares, mas multiplicados por 28.

Isso foi constatado no curso da crise atual: para recolocar em marcha a máquina europeia foram necessárias reuniões intermináveis, surrealistas e extenuantes, além de negociações sem fim com cada país.

Poderíamos detalhar as fraturas, as rupturas, as rachaduras que atravessam o espaço europeu. Um exemplo: há alguns anos, a Alemanha, graças à generosidade de Merkel (e contra a opinião pública do seu país), decidiu abrir suas fronteiras para os imigrantes da África e da Ásia.

Inversamente, a Itália, que foi por longo tempo porta de entrada dos imigrantes, repentinamente mudou de conduta há um ano ao eleger um governo populista de direita cujo homem forte, o ministro do Interior, Matteo Salvini, rechaça sem piedade nem temor todos os barcos carregados de mutilados que chegam às margens do Mar Mediterrâneo.

Recentemente, um barco humanitário comandado por uma jovem alemã descarregou, contra as interdições decretadas por Salvini, sua carga de desesperados num porto italiano. Bramidos do ministro Salvini e uma determinação indelével da alemã (que agiu pela própria iniciativa e não por ordem de Berlim), duas pessoas que pertencem à mesma União Europeia.

A questão é saber se a inesperada melhora do clima observada na noite de ontem, no âmbito da União Europeia, foi ou não em proveito de uma verdadeira reforma do sistema de governo europeu que, aos olhos de todos os observadores está se esgotando. / Tradução de Terezinha Martino

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