- O Estado de S.Paulo
Nas escadas rolantes, placas conclamam: ‘Deixe a esquerda livre’. Entendeu?
No domingo, um general ministro subiu num caminhão de som em Brasília e deu de esbravejar contra os “esquerdopatas”. É um soldado em missão. Não dará trégua. Para ele, os males do Brasil são muita esquerda, não muita saúva. Seus colegas de primeiro escalão concordam. Houve um que declarou que, no Brasil, os banqueiros são comunistas. Sabe como é, ficam lá com o capital para cima e para baixo, isso sem falar nos que insistem em usar vermelho na propaganda. No Brasil, crê o ministro, o capital financeiro filiou-se ao Komintern.
O governo está de olho. Diariamente, autoridades amaldiçoam as “ditaduras de esquerda” nas universidades públicas – e, nota de rodapé, nas particulares idem, ibidem. O chanceler anunciou em vídeo uma descoberta teórica na mesma frequência metal: o nazismo era de esquerda. Isso mesmo. Como tudo o que há de ruim na face da Terra há de ser de esquerda, aquele tal de Hitler só podia mesmo ser comunista. E não só Hitler. O mosquito da dengue anda em via de ser declarado “comunista”, bem como os radares de trânsito, as árvores, os índios e os ecologistas. Esquerdopatas. Gays, jornalistas, fiscais do Ibama e artigos da Constituição que dificultam o liberou geral das armas de fogo: comunistas de uma figa.
Ninguém aqui vai contestar a clarividência cívica das saneadoras crenças governamentais. Nada contra a sacralidade messiânica da missão maior de livrar o País do comunismo. E Deus acima de tudo – pois Deus, o governo intui, é capitalista até o último fio de cabelo branco.
Assim sendo, nada a opor quanto a isso. A incumbência de não deixar que o comunismo tome conta da nação desprotegida é por demais onerosa e exigente. Dedicados a essa causa maiúscula durante as 24 horas do dia, o chefe do governo e seus subalternos mal têm tempo de cuidar de reformas ou de estagnações econômicas, esses detalhes desimportantes. É compreensível. O comunismo dá muito trabalho, ele e seus filhotes malévolos, como a “ideologia de gênero” e o limite de pontos na carteira de motorista. A trabalheira do governo é imensa. Não sobra energia para mais nada.
Só o que poderíamos ponderar – e isso com o devido respeito, sem “balbúrdia” – é que esse termo, “esquerdopata”, carece de precisão científica e de bom gosto. Em lugar de esquerdopatia, seria menos abstrusa a palavra “esquerdofrenia”, como teria preferido um jornalista que, sorte dele, já morreu. Mas como o general do caminhão adotou a terminologia menos psiquiátrica, deixemos para lá os pruridos filológicos ou estéticos. Concedamos um desconto a ele.
O general não tem tempo a perder com firulas, cônscio da magnitude do combate que trava. Só os tolos acreditam que o “perigo vermelho” perdeu gás com a queda do Muro de Berlim. A cúpula da Esplanada dos Ministérios não é boba. Sabe que a frase de Karl Marx e Friedrich Engels (esses aí, esquerdopatésimos) dando conta de que o “fantasma do comunismo” rondava a Europa hoje se aplica ao Brasil. É preciso exterminar o fantasma. A esquerdolatria está em toda parte, é uma praga. Nossos governantes vão lá, resolvem a situação numa frente e, quando ninguém espera, eis que a esquerdogênese se insurge em outro flanco. É uma guerra permanente, inclemente, demente.
Os comunistas – como este governo percebeu, para sorte e salvação dos brasileiros – conseguiram se infiltrar em quase todas as instituições. No ensino médio, professores esquerdológicos doutrinam adolescentes incautos para transformá-los em “idiotas úteis” que são contra o porte de armas e não querem bater em homossexuais. No ensino fundamental, grassa o “paulo-freirismo”, que devora a alma das criancinhas. A alfabetização de adultos, então, é uma usina de comunistóides. Os ministros, com ou sem patente, olham para a terra devastada, erguem a cabeça heroica e tomam coragem: é muito por fazer.
A caça aos comunistas está só no começo. Nossos bravos governantes não vacilam. Ainda não desenharam uma estratégia para atacar o metrô, mas é questão de tempo. A contaminação comunista nas áreas de circulação do metrô é notória e acintosa. Numa cidade como São Paulo, os cerca de 8 milhões de passageiros que por lá trafegam são submetidos a doutrinações e lavagens cerebrais em todo o trajeto, desde a entrada das estações até as portas dos vagões. Nas escadas rolantes, plaquinhas conclamam a multidão: “Deixe a esquerda livre”.
Entendeu agora? É óbvio que isso vai formando – subliminarmente, como sabem os governistas – legiões de comuno-agentes. A mensagem “deixe a esquerda livre” inculca nas mentes distraídas a esquerdofilia. É preciso acabar com isso já, antes que o esquerdoteísmo se aposse do espírito do presidente da República.
Não é só. Os brasileiros esperam, sôfregos, que medidas saneadoras estejam em estudo para mudar o lado da aliança de casamento. Atualmente, a aliança de noivado na mão direita induz os “idiotas úteis” a pensarem que a direita é provisória e a esquerda, sim, é que é definitiva. Que urjam as providências, drásticas. Perto desse tema de altíssima e periculosa gravidade, a crise na Casa Civil é fichinha e as derrotas no Congresso Nacional, irrelevantes.
Também o sistema de ultrapassagem nas rodovias há de estar em reexame nos bastidores sacrossantos do Dnit. Esse negócio de ultrapassar pela esquerda é coisa de comunista. O Brasil verde e amarelo adotará a matriz inglesa, pois o governo vem de descobrir que na Inglaterra, berço do liberalismo, é só pela direita que se avança. Sabe também que, embora o automóvel tenha sido inventado um pouquinho depois da Magna Carta, é a conformação de mão e contramão, com o motorista à direita, que predispõe o povo a não votar em gente esquerdopatológica.
Fica faltando o coração, que bate do lado esquerdo do peito. Os generais e os ministros ainda não decidiram o que fazer com ele.
* Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP
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