Blog Matheus Leitão /G1
Quando a direita populista começou a ganhar eleições na Europa e, depois, nos Estados Unidos, formou-se consenso generalizado de que era uma tendência global. O desencanto com democracia representativa, que fora dominada por social-democratas, socialistas e coalizões progressistas, abria espaço para longo período de hegemonia da direita. Os precursores pareciam ser a Alemanha, o Reino Unido e a Espanha, onde a direita conquistara o poder bem antes.
O avanço do populismo em várias democracias do mundo está associado à falta de respostas estruturais, que funcionem, para os problemas criados por uma transição global radicalmente transformadora. Além disso, crises fiscais resultantes dos estreitos limites impostos pelo capital financeiro global, pivô do novo padrão de financiamento de governos e empresas, levaram à imposição de programas de austeridade que solaparam a legitimidade dos governos de esquerda e centro-esquerda. Apenas Portugal, com sua geringonça, uma coalizão de esquerda, resistiu à austeridade-modelo e reajustou as finanças sem sacrificar o legado progressista da era social-democrática. O êxito dessa divergência será testado nas próximas eleições de outubro.
A transição gera instabilidade macroeconômica e social e põe em cheque modelos de negócios e a eficácia representativa das democracias, em sociedades fluidas, que mudam rapidamente, impulsionadas por forças sociais emergentes e pressionadas por forças sociais em declínio. Este entrechoque entre forças desiguais inquieta e desestabiliza. As emergentes não tinham, e talvez ainda não tenham, recursos de poder, influência e mobilização suficientes para confrontar aquelas em declínio, acostumadas ao exercício do poder, portanto mais experientes no manejo da política.
O que parecia uma tendência avassaladora e durável, está dando sinais de ser uma onda, que parece começar a refluir. O primeiro sinal foi a vitória da centro-direita sobre a direita ultranacionalista na França. Seguiram-se as derrotas do PP na Espanha, culminando na vitória e no governo liderado pelo PSOE. O crescimento dos Verdes e o resultado aquém do esperado dos ultranacionalistas, nas recentes eleições para o parlamento europeu, mostraram mudança na direção do vento, a soprar só para a direita. Nessas eleições, o partido mais extremista da direita alemã, o AfD perdeu posições. A dupla derrota de Recep Tayyip Erdoğan na eleição para a prefeitura de Istambul, na Turquia, soma-se a essas pistas de refluxo. Que estão presentes, também, na retomada social-democrática nas democracias nórdicas, Islândia, Finlândia, Suécia e Dinamarca.
Isto não significa, todavia, que estejamos diante de uma renascença social-democrática ou socialista no mundo. O que todas essas eleições, sobretudo para o parlamento europeu, indicam é a fragmentação política. Uma fragmentação que já pôs em cheque o bipartidarismo do modelo original de Westminster, de voto majoritário-distrital, no Reino Unido, desde a coalizão dos Conservadores de David Cameron, com os social-liberais de Nick Clegg. Ela está evidente nos 24 candidatos concorrendo às primárias do Partido Democrata nos Estados Unidos, a cobrir um espectro político que vai da centro-esquerda à esquerda socialista. Tenho tratado dessa tendência à fragmentação e ao realinhamento partidário no Brasil. As eleições de 2018 contiveram os dois movimentos, a onda populista de direita, que elegeu Bolsonaro no segundo turno, e a fragmentação, que produziu o congresso mais fragmentado partidariamente de nossa história e do mundo.
O mais provável é que a tendência seja à fragmentação política, que levaria a um realinhamento partidário futuro, com provável emergência de novos partidos, mais alinhados ao “espírito do tempo” e progressivamente mais representativo das forças sociais emergentes da transição que se ,mostrem mais enraizadas estruturalmente. O refluxo da onda de direita seria perfeitamente compatível a essa tendência à fragmentação e posterior realinhamento partidário.
E, por que a onda de direita refluiria? Porque essas lideranças apelam para a raiva, a decepção e o desencanto da maioria com a persistência dos problemas e a falta de representatividade da velha política. São, porém, incapazes de oferecer soluções estruturais que mitiguem os efeitos da transição e a tornem menos inóspita. Ao contrário, medidas ultranacionalistas, a radicalização nos costumes, a rejeição aos imigrantes, o racismo, a intolerância religiosa, a homofobia, a aposta na violência policial, nada resolvem. Apenas aumentam a rejeição a esses governos e à política. Desta forma, aumentam o desconforto geral. A decepção com o que parecia uma alternativa, uma novidade, amplifica o desgosto e afasta as pessoas da política. Pode dar em uma nova forma de alienação coletiva, um distúrbio da transição, que agrava a falta de opções políticas viáveis, democráticas e eficazes. Esse quadro de frustração, ao mesmo tempo que retira cidadãos, voluntariamente, da arena eleitoral, tende a aumentar a fragmentação política e partidária, na busca aflita por novas opções inovadoras.
Este é um quadro em muito maior sintonia com a grande transição que tenho analisado, inclusive neste espaço. Transformações radicais, como que experimentamos globalmente, são, por um tempo imprevisível, desestabilizadoras. As velhas estruturas ruem, antes que as novas possam assumir seu lugar. São momentos de incerteza, insegurança e medo. Tudo isso provoca desalento e indignação, levando a buscas desatinadas, que abrem espaço para a sedução dos populistas. Estes revelam-se, entretanto, pregadores de esperanças vãs. Ondas como essa do populismo de direita podem voltar a ocorrer, do mesmo modo que ondas de populismo de esquerda. Mas, a tendência persistente é a da fragmentação decorrente dessa busca de novidades políticas. Com o amadurecimento das formações sociais que emergem da transição estrutural, talvez se dê um realinhamento das forças políticas, gerando novos sistemas partidários, profundamente modificados e a consequente renovação da democracia representativa, que pode se tornar mais participativa e aberta.
* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e comentarista da CBN.
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