Entrevista - Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se mostra apreensivo com o futuro do País. Sobretudo pelo que chama de autoritarismo de Bolsonaro, que, no seu entender, ao manter o acirramento ideológico, ameaça a recuperação da economia: “O presidente não está tendo postura de estadista”.
Germano Oliveira | Revista IstoÉ
Fernando Henrique Cardoso estava no último final de semana em Buenos Aires, Argentina, para uma série de palestras, quando dirigiu-se ao quarto do hotel e ligou a televisão. “Só falavam da Amazônia ardendo. Os jornais do mundo inteiro também só falavam nisso”, disse o ex-presidente. A apreensão lhe consumiu. Mais ainda quando viu as reações de Jair Bolsonaro à crise ambiental sem precedentes: o presidente procurava negar a gravidade da situação, afirmando que o desmatamento era menor do que realmente é e que os incêndios florestais não seriam significativos. “Quando o presidente dá a sensação de que vale tudo, o pessoal toca fogo mesmo”, lamentou FHC. Para quem já enfrentou a questão ambiental na Amazônia com mais rigor quando foi presidente, Fernando Henrique disse, em entrevista exclusiva à ISTOÉ, que Bolsonaro é conivente, pelo menos verbalmente, com a tragédia que está queimando as florestas no Norte do país. “Bolsonaro não está tendo uma postura de presidente, de estadista”, afirmou o tucano.
Aos 88 anos, o ex-presidente teme que a crise ambiental possa levar os países desenvolvidos, sobretudo os europeus, a impor retaliações comerciais aos produtos agrícolas brasileiros. Mas essa não é a única preocupação. Fernando Henrique está angustiado com os discursos polêmicos de Bolsonaro. “Essas disputas ideológicas são arcaicas”, diz FHC, para quem as controvérsias desarticulam também a base no Congresso, que acaba de dar uma grande vitória ao governo, com a aprovação da Reforma da Previdência na Câmara. “Tudo muito graças ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia”, reconheceu. Para ele, ao manter a polarização política, Bolsonaro atrapalha as reformas, a recuperação da economia e a própria democracia. Segundo o ex-presidente, Bolsonaro adota posturas autoritárias. Em breve, o País pode ficar em xeque novamente. “Estamos vendo a volta de um tipo de monarquia”, disse ele enquanto manuseava peças de xadrez.
Como presidente de honra do PSDB, FHC não participa mais da vida orgânica do partido, mas mostra-se atento à necessidade de refundação da sigla. Dessa forma, o ex-presidente já vislumbra a sucessão presidencial em 2022: acha que o governador de São Paulo, João Doria, é o único nome do partido para a disputa e que o apresentador Luciano Huck tem chances de vencer desde que simbolize algo para o País. “Se simbolizar, ele leva”, vaticina.
• Como o senhor está vendo a crise provocada pelo desmatamento e queimadas na Amazônia?
Em parte, as queimadas são cíclicas e naturais. E, em parte, acontecem por causa do desmatamento, mas aí é crime. O governo emitiu sinais verbais de despreocupação. O mundo ficou assustado. Há interesses comerciais ao mesmo tempo. Junta tudo isso e deu essa confusão. Eu estava em Buenos Aires e liguei a televisão. Só falavam da Amazônia ardendo. Os jornais do mundo inteiro só falam nisso também. Claro que há um pouco de exagero, mas, por outro lado, a retórica do governo ajudou os interesses contrários à agricultura brasileira. A agricultura moderna sabe que tem que haver preservação do meio ambiente. Não há incompatibilidade, mas acho que o governo errou ao abrir brechas para que acontecesse o que está acontecendo. O governo demorou muito a reagir. Primeiro, demitiu o diretor do Inpe, negou o desmatamento, não disse a verdade. E criou esse clima. E tem outro risco: é como que a soberania implicasse em queimar. Não. A soberania implica em preservar e usar o que for possível.
• O presidente da França, Emmanuel Macron, disse que o problema se transformou em uma crise mundial.
Macron exagerou. Os franceses são os mais resistentes a um acordo com o Mercosul. Já era no meu tempo. Porque a França também é produtora agrícola, embora o Brasil seja mais competitivo. Há interesses no meio disso. Bolsonaro também extrapolou, fez piadinhas com a mulher dele. Quem é presidente tem que se comportar como tal. Precisa ter em conta que a palavra dele pesa muito e foi descuidado.
• O senhor acha que os países desenvolvidos podem promover retaliações comerciais ao Brasil por descuidarmos da Amazônia?
Eu vi declarações do ex-ministro Blairo Maggi, recentemente, dizendo que os europeus podem usar o desmatamento como pretexto para dificultar as exportações brasileiras. O Brasil é uma potência ambiental. De repente, Bolsonaro deu a impressão para o mundo de que o governo lavou as mãos. Não pode.
• O governo está sendo conivente com a tragédia?
Verbalmente sim. Não sei qual é a extensão real do desmatamento atual. Agora, a responsabilidade do governo é não entender as relações do Brasil com mundo. Quando o presidente dá a sensação de que vale tudo, o pessoal toca fogo mesmo. Os fazendeiros avançam nas terras que não podem. É crime. A defesa de nossa soberania implica em mostrar nossa preocupação. Bolsonaro não está tendo postura de presidente, de estadista.
• O senhor acha que o presidente atrapalha com suas falas polêmicas?
Não tenha dúvida. Ele está tropeçando nele mesmo. Essas disputas ideológicas são arcaicas. Ele está lutando contra uma esquerda que não existe mais tal como ela era. Quem é o sustentáculo dessa esquerda que eles supõem que tomou conta do Brasil? Ninguém. O principal deles está na cadeia. Está aniquilada.
• Quando Bolsonaro acusa os parlamentares de desejarem o toma lá dá cá, o presidente promove um clima hostil e atrapalha as reformas?
Ele foi deputado muitos anos. Eu nunca o vi na vida. Quando era deputado, era corporativista. Fazia agitação a favor de aumento de salário dos militares. Deveria conhecer o Congresso. Os presidentes que não percebem que o Congresso existe e tem força, se arriscam muito. Seja por incapacidade de dialogar, seja por prepotência, os dois casos não dão bons resultados. Agora, até ministros ele está fritando.
• O senhor falou em fritura de ministros e temos visto que o presidente está deixando Sergio Moro em uma posição desconfortável.
Moro está ficando numa situação penosa. É o ministro com maior popularidade. O presidente teve uma crise de ego: eu mando, eu faço. Claro que o presidente manda, mas não precisa falar. Quem manda não fala, exerce o poder.
• O que se passa com o presidente?
É muito autoritarismo. O presidente no Brasil tem muito poder, até mais que o presidente americano, pois o Congresso lá é mais forte. Bolsonaro tem que convencer que o seu caminho é o melhor para o País. Não tem que dizer que tem poder, dou ordens, eu faço. Na democracia, para que a ordem seja cumprida, você tem que convencer que aquilo é bom para o País.
• Como o senhor está vendo a intervenção que o presidente tem feito nos órgãos públicos, como PF, Receita e Coaf, tudo para proteger o próprio filho Flávio?
Isso desorganiza o processo de comando. Entendo que o presidente tenha a liberdade e necessidade de sugerir as mudanças. É natural. Foi eleito para comandar. Não foi eleito só para ficar de Rainha da Inglaterra, como ele mesmo disse. Mas comandar na democracia não é a mesma coisa do que no autoritarismo. Não adianta só mandar. Está faltando o lado do convencimento.
• O senhor acha que essas intervenções objetivam enfraquecer os órgãos públicos, com prejuízos para a Lava Jato?
Pode, mas não gosto de julgar intenções. Não sei o que ele tem na cabeça, mas acho que pode tirar a força da Lava Jato. Agora, ela também não pode extrapolar. Às vezes dá essa impressão. Por exemplo, o que foi feito com o ex-presidente Temer. Um escândalo à toa. Ele foi filmado sendo preso e não tinha nem sido condenado. Não é correto.
• Esta semana anunciou-se que o Brasil poderia entrar em recessão técnica. Como o senhor vê essa situação?
Vejo com muita preocupação. Há riscos no mundo todo. Outros países estão em dificuldades. Juntando as nossas com as globais, ficamos numa situação embaraçosa. Fica mais evidente aqui porque a economia não cresce e o desemprego também não diminui por conseqüência. Isso cria um mal-estar. Enquanto não houver investimento, não haverá crescimento.
• O senhor acha que a polarização política que Bolsonaro impõe pode retardar a recuperação da economia?
Claro. Quem tem dinheiro para investir tem medo de colocar o dinheiro onde há insegurança. E as falas do presidente têm gerado uma grande insegurança.
• A reforma tributária, que o senhor também tentou fazer, ajudará nessa recuperação?
Eu tentei. Fizemos alguma coisa. O Everaldo Maciel (da Receita Federal) fez várias reformas, pouco a pouco. Mas vou dizer com sinceridade: a gente apanha mais tentando fazer uma grande reforma do que modificando aos poucos. A gente apanha e às vezes não passa no Congresso. A reforma tributária é muito difícil porque tem a burocracia dos diversos estados e o contribuinte também não quer. Um governador acusa o outro, porque todos acham que deve se tirar do outro.
• O senhor acha que a reforma tributária terá dificuldades de passar no Congresso?
Não sei se vai passar, mas vai ter um desgaste grande do governo. Quem está no governo tem que estar sujeito a chuvas e trovoadas, tudo bem. O interesse nacional pesa mais do que o interesse político. Tem que enfrentar, mas não é fácil enfrentar sem ter apoio. No Congresso e no povo. Os deputados querem saber como vão se reeleger.Veja o caso da Previdência. A população levou um tempo de maturação para entender que ou se mexia na idade mínima ou não haveria dinheiro no caixa para pagar as aposentadorias. No fundo, precisamos de mais investimentos estrangeiros na economia.
• Qual é a razão da falta de investimentos no Brasil?
Falta credibilidade ao governo. No Brasil hoje me preocupa também é a falta de condução do projeto. Pela primeira vez estamos vendo a volta de um tipo de monarquia, uma família onde todos seus membros opinam sobre a condução do País. Família é sempre uma coisa complicada. Tem o sentimento filial e o sentimento público. Dificultam a ação pública.
• Como o senhor vê a iniciativa do presidente em nomear um de seus filhos como embaixador em Washington?
Eu não conheço o deputado. Pode até ser competente, mas é claro que tem que ver que a relação de família atrapalha, não ajuda em nada. Por mais que ele tenha mais acesso ao presidente, isso vai ser visto com reservas pelos próprios diplomatas do Itamaraty. E a imprensa vai criticar, vai atacar, mesmo que ele seja bem intencionado. Acho um erro o presidente expor o filho.
• Como presidente de honra do PSDB, como o senhor acompanhou a tentativa de expulsar o deputado Aécio Neves?
Eu já me manifestei sobre isso. Tem que seguir o estatuto do partido, de só expulsar depois de uma condenação. A situação do Aécio não é diferente de vários outros. Então, ou se aplica a regra a todos ou não se aplica a ninguém. Prejudica o partido? Claro que prejudica. O sistema partidário brasileiro é ruim, porque todos os partidos se meteram em muita confusão e o PSDB não ficou fora disso.
• O governador de São Paulo, João Doria, que tem o controle da máquina partidária hoje, quer levar o PSDB mais para a direita?
Não sei se vai mais para a direita. Os partidos no Brasil sobrevivem quando têm candidatos a presidente. Obviamente, o governador Doria é candidato. Não vejo outro dentro do partido com o peso de Doria. Isso permite um certo alinhamento do partido em torno dele. Há gente por fora, como o Luciano Huck, o Ciro Gomes, o PT vai ter candidato, o Bolsonaro deve ser candidato à reeleição. Os partidos que não tiverem candidatos não terão chance de sobreviver.
• O senhor chegou a dizer que, se Doria decidir ser candidato, Bolsonaro é o adversário. O senhor acha que ele deve romper com o presidente?
Não. Está muito longe. Falta muito tempo para as eleições. As coisas vão se colocar mais agudamente daqui a dois anos.
• O senhor tem batido muito na tecla do centro, mas a polarização entre esquerda e direita ainda está muito forte.
Certamente, mas acho que as pessoas vão acabar se cansando. Precisamos ver é no campo das ideias. Por isso mencionei o Luciano Huck. Precisamos ver se ele vai simbolizar algo para o País. Se simbolizar, ele leva. Um candidato de centro precisa mostrar que essa polarização atrapalha o crescimento do Brasil e o emprego, além da própria democracia.
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