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Os 40 minutos de chibatadas no garoto negro de 17 anos foram os das chibatadas em nossa insuficiente humanidade
O garoto de 17 anos, negro, morador de rua, foi apanhado por dois seguranças terceirizados de uma rede de supermercados na Vila Joaniza, na zona sul da cidade de São Paulo. Trancado num quartinho do estabelecimento, foi amordaçado, despido, amarrado e chicoteado durante 40 minutos, com um açoite feito de dois fios elétricos trançados. Os dois torturadores, de meia-idade, têm antecedentes. Um por apropriação indébita. Outro, por lesão corporal contra a mulher.
O adolescente tentara pegar quatro barras de chocolate, no valor total de R$ 6. Um vídeo de 41 segundos, feito por um dos torturadores, exibe o feito na internet. Milhões de brasileiros podem acessá-lo e ver e ouvir, ao vivo e em cores, como era a surra de um negro no pelourinho nos tempos da escravidão. Com trilha sonora de choro e gemidos.
O delegado Pedro Luís de Sousa, do 80º Distrito Policial, nascido em uma favela do Rio Pequeno, perto da Cidade Universitária, com uma carreira de décadas em delegacias da periferia, deu sua impressão: “Como um delegado negro e nascido na periferia, não consegui ver o vídeo até o final. Parece que voltamos à época da escravidão”.
O garoto é conhecido no bairro. Vive nas ruas desde os oito anos de idade. Perdeu o pai há cinco anos, no incêndio de um barraco. A mãe é alcoólatra. É analfabeto e tem déficit cognitivo. Pessoas que o conhecem e o ajudam dizem que tem físico e mentalidade de criança. Usuário de crack. Come o que lhe dão comerciantes e conhecidos. Um bar lhe serve café e pão todas as manhãs. Às vezes, quando tem dinheiro, obtido a catar coisas no lixo para reciclagem, almoça no Bom Prato do bairro, um restaurante popular mantido pelo governo do Estado, por R$ 1. O garoto é filho da cultura e da trama de estigmas, adversidades e insuficiências que a Lei Áurea não aboliu.
Um morador de rua, mais velho, a quem chama de pai, o protege. Disse aos jornalistas que o garoto passou a ter medo de morrer depois do episódio recente. O terceiro praticado contra ele pelos mesmos seguranças. Ameaçado de morte pelos dois, temeu denunciar a violência sofrida. Com a repercussão do caso, um de seus seis irmãos o localizou e o amparou, enquanto aguarda a decisão da Justiça.
A justa reação do delegado de polícia sugere mais do que constatação. Pede, também, análise. Não voltamos ao tempo da escravidão. Apenas não saímos dele. Leis, como a Lei Áurea, não revogam a cultura de iniquidades que se pretende combater por meio delas. A escravidão não se resumia ao tronco, ao pelourinho, ao “bacalhau” de couro cru trançado para castigar o escravo atrevido que ousasse evadir-se das humilhações do cativeiro. A escravidão era também um modo de ver o outro como ínfimo, no limite entre o humano e o semovente. O escravo era mercadoria, animal de trabalho, garantia de empréstimos hipotecários junto aos bancos.
Sérgio Buarque de Holanda, sobre a revolta dos colonos suíços, em 1856, na fazenda Ibicaba, em São Paulo, ressalta que o trabalho livre não eliminava a mentalidade escravista dos fazendeiros. Para eles, a escravidão não era apenas um fardo do negro, mas um atributo do trabalho manual, qualquer trabalho. A libertação do trabalhador não libertava e não libertou o trabalho do estigma herdado do cativeiro.
Não é estranho que o estigma e as práticas do escravismo perdurem no Brasil. A abolição, ao libertar o negro, libertou o branco dos encargos da escravidão. Foi feita para racionalizar os custos econômicos das grandes fazendas e viabilizar o lucro. Mas não reeducou o conjunto da sociedade, brancos e negros, para o que é próprio da liberdade: os direitos individuais, os direitos sociais e os direitos humanos. Os que nos fazem humanos e respeitadores da condição humana. Os 40 minutos de chibatadas no garoto negro de 17 anos foram os das chibatadas em nossa insuficiente humanidade, na estupidez de quem liberta os outros sem se libertar.
O episódio nos mostra um mundo que achamos que não é o nosso. Na verdade, é. Devido a nossa indiferença, aquela chibata estava nas mãos de todos. O episódio revelou, sobretudo, a sociedade paralela centrada na pessoa do desvalido, com suas relações de compaixão e apoio, não só de brutalidades, seus espaços improvisados para dormir um sono, obter um real para comer, o ombro de um pai improvisado para enganar o abandono social, o crack para amortecer os golpes da vida. Um mundo com suas próprias leis e regras, seus capitães do mato para proteger os interesses dos vizinhos de sistema, de um capitalismo que floresce à beira do precipício da ordem, no limiar da fome, da boca vazia do chocolate que adoça a vida da criança que não cresceu, porque também não crescemos.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto).
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