Governo cria confusão em torno da CPMF- Editorial | O Globo
Demissão de Cintra, que também pode ter sido motivada por fiscalizações da Receita, prejudica expectativas
Fases de mudanças profundas em governos, como agora no início da gestão Bolsonaro, com uma agenda pesada de reformas, costumam gerar desentendimentos que podem levar a trocas de pessoas no alto escalão.
É o que aconteceu na quarta-feira com o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, demitido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, por determinação do presidente Jair Bolsonaro. Este tuitou que o secretário caíra por tentar recriar a CPMF. Mas talvez não seja tão simples.
Pouco antes, no fim de semana, o jornal “Valor Econômico” trouxera longa entrevista em que Paulo Guedes alinhou argumentos pela volta do tributo, rebatizado de Imposto de Transações Financeiras (ITF). Até estimou uma arrecadação de R$ 150 bilhões, a serem usados para compensar a perda de receita com o necessário corte do custo trabalhista (impostos sobre a folha de salários), um entrave à criação de empregos formais.
Foi-lhe perguntado sobre a conhecida resistência de Bolsonaro ao gravame. Guedes disse esperar que possa convencer o presidente, da mesma forma que fez nas mudanças previdenciárias.
A grande vantagem deste tipo de imposto, que incide sobre grandes volumes de recursos, é arrecadar muito dinheiro, a baixo custo. Mas as desvantagens são várias.
Na terça, o secretário-adjunto da Receita, Marcelo Silva, em um evento público, avançou vários passos e revelou até possíveis alíquotas do ITF. Depois da queda de Cintra, o presidente em exercício, Hamilton Mourão, explicou a demissão pelo fato de a discussão sobre o retorno da CPMF ter ficado “pública demais”. Não pelo tema em si.
Há nuances entre a entrevista do ministro e a apresentação em que foram reveladas possíveis alíquotas, e o presidente da República aproveitou para insistir em que o imposto não voltará.
Mas os sinais confusos que o governo emite sobre a CPMF são ruins para as expectativas dos agentes econômicos, já degradadas por declarações e atitudes impróprias da família Bolsonaro.
Em todo este contencioso há ainda a grave questão do avanço do governo sobre órgãos do Estado para enfrentamento da corrupção, entre os quais a Receita Federal.
Do secretário Marcos Cintra seria cobrado conter os auditores fiscais, servidores do Estado e não de governos, e que precisam de autonomia para abastecer investigações sobre indícios de desvios de recursos públicos.
O que pesou mais para a demissão do secretário? Mais um fator a disseminar incertezas.
O tempo passa e ainda há pela frente uma obra desafiadora de engenharia política, para compatibilizar as diversas propostas de reforma tributária —a do governo e as da Câmara e do Senado, pelo menos. Quanto menos ruídos, melhor.
Um bode no altar do governo – Editorial | O Estado de S. Paulo
Como um bode expiatório, o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, foi sacrificado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para atender a mais um rompante do presidente Jair Bolsonaro. O altar do sacrifício foi a incompetência do governo, incapaz, em seu nono mês de mandato, de se articular internamente e de fixar planos, programas e rumos claros para toda a administração.
Exemplo dessa incapacidade é o recorrente conflito entre os interesses comerciais do País, fortemente ligados ao agronegócio, e os tropeços diplomáticos do presidente da República, do ministro de Relações Exteriores e até do ministro da Economia, autor de um comentário grosseiro sobre a mulher do presidente da França.
A demissão do secretário Marcos Cintra foi motivada, certamente, por algo mais que seu apego à ideia de recriação da CPMF, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Internado em um hospital de São Paulo, em recuperação de uma cirurgia, o presidente da República reagiu à divulgação de pormenores sobre um plano de reforma tributária defendido pelo economista Marcos Cintra. Não havia no governo, ainda, um entendimento sobre todos aqueles detalhes.
Em manifestação por uma rede social, o presidente voltou a rejeitar o retorno da CPMF, mesmo com novas características, e qualquer aumento da carga tributária. Têm oscilado, no entanto, as declarações presidenciais sobre o assunto. Atendendo o ministro da Economia, ele chegou, há dias, a admitir, sob condições, a discussão do assunto.
Embora tenha sacrificado o secretário da Receita, o ministro Paulo Guedes tem sido, também, um insistente defensor da ressurreição da CPMF. Com esse tributo, disse ele no começo de setembro, seria possível pegar empresas como Netflix e Uber, típicas da “nova economia”. Não houve reação do presidente.
O ministro Paulo Guedes foi simplesmente mais cauteloso que Marcos Cintra ao falar sobre o alcance do imposto. Numa explicação menos cuidadosa, o secretário da Receita havia apontado a taxação até de igrejas para indicar a eficiência da nova CPMF. O presidente, nessa ocasião, mostrou-se furioso.
Mas o sentido das duas declarações é exatamente o mesmo, em termos técnicos. Faltou alguém explicar esse ponto ao presidente Bolsonaro, obviamente despreparado para tratar desse assunto – e de tantos outros, como interesses de Estado, política internacional, contas públicas, comércio exterior, política educacional, impessoalidade administrativa e requisitos da laicidade estatal.
O ministro Paulo Guedes sempre defendeu e continua defendendo o “imposto único”, disse o ex-secretário Marcos Cintra um dia depois da demissão. Poderia ter mencionado, para sustentar essas afirmações, os comentários de Guedes sobre a possível arrecadação, por ele estimada entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões. O ministro defendeu a adoção desse imposto, em muitas ocasiões, como substituto da contribuição patronal para a Previdência. Terá condições de continuar defendendo?
Se insistir, encontrará a oposição de seu chefe e a dos presidentes da Câmara e do Senado e de muitos parlamentares, além das críticas de economistas muito respeitados. A incidência cumulativa da CPMF é só um de seus defeitos. Qual sua base econômica? Não é a produção nem a circulação de bens e serviços, nem operações financeiras (como a compra de ações), nem o pagamento ou recebimento de rendas, mas a mera movimentação de dinheiro. Por que não ressuscitar a velha tributação por cabeça, o imposto pago pelo súdito por estar vivo?
Mas a alternativa mais provável também será complicada. Sem a CPMF e os bilhões estimados pelo ministro, sobrará alguma proposta governamental de reforma tributária? Será preciso recomeçar do zero? Quanto tempo se consumirá?
Com a Receita Federal sob nova administração, sobrará talvez algum ganho político. Uma substituição cuidadosa poderá evitar investigações consideradas inoportunas. Dormindo melhor, pessoas ilustres pouparão energia para servir à República. Depois do Coaf, mais uma fonte de dissabores poderá ser afastada. Nem tudo é CPMF.
Tempo perdido – Editorial | Folha de S. Paulo
Insistência tola em CPMF derruba chefe da Receita e retarda reforma tributária
A escolha de Marcos Cintra para o comando da Receita Federal no governo Jair Bolsonaro (PSL) era, desde a origem, uma temeridade.
Afinal, o economista, ex-vereador de São Paulo, ex-deputado federal e ex-secretário de administrações municipais ganhou notoriedade pela defesa obsessiva de um imposto único ou, mais realisticamente, de algum tipo de tributo incidente sobre movimentações financeiras com ampla capacidade de gerar arrecadação.
Tal bandeira representava óbvio estorvo para Bolsonaro, que nos tempos de deputado se bateu contra a velha CPMF e durante a campanha ao Palácio do Planalto rechaçou com veemência a ideia de ressurreição em caráter definitivo da contribuição cobrada até 2007.
Que o ministro Paulo Guedes, da Economia, tenha abraçado a proposta —no mínimo controversa do ponto de vista técnico e explosiva politicamente— mostra desconhecimento de aspectos elementares da realidade do setor público.
Recordem-se, a esse respeito, suas hoje caricatas promessas de zerar o déficit do Tesouro Nacional em um ano e de obter R$ 1 trilhão com a venda de todas as estatais.
Em conversa recente com esta Folha, o presidente já havia apontado a inexperiência do ministro, que chamou de “chucro” até chegar ao governo. Na mesma ocasião, mencionou de modo depreciativo o ainda secretário da Receita: “O Cintra às vezes levanta a cabeça, mas eu vou lá e dou uma nele”.
Pois Bolsonaro, mesmo recuperando-se de cirurgia, fez questão de reivindicar os créditos pela demissão de Cintra. Noticiou-a na quarta-feira (11) em rede social, acrescentando que a recriação da CPMF está descartada “por determinação do presidente”.
Afastou, com isso, as ilusões remanescentes de que Paulo Guedes seria um superministro com carta branca em sua área —e, no que diz respeito ao caso específico da taxação das transações financeiras, munido de boas razões.
Não se pode, infelizmente, descartar a hipótese de que a demissão, levada a cabo depois de este jornal ter revelado novos estudos para o tributo, dê margem a alguma intervenção presidencial na Receita.
Bolsonaro, cabe lembrar, já reclamou de investigações do órgão sobre parentes seus.
Será lamentável, ademais, se o expurgo de Cintra retardar a definição da proposta de reforma tributária do Executivo —que vai se juntar a projetos em análise na Câmara dos Deputados e no Senado.
A insistência em um imposto cumulativo, regressivo, em desacordo com as melhores práticas internacionais e de má memória para os contribuintes brasileiros já resultou em excessiva perda de tempo e energia numa pauta essencial.
Após Coaf, PGR e Polícia Federal, a vez da Receita – Editorial | Valor Econômico
Demissão de Cintra atende objetivos do presidente sem enterrar o novo imposto
A demissão do secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, atende a conveniências e objetivos do presidente Jair Bolsonaro, sem, no entanto, afastar definitivamente a possibilidade da criação de um imposto nocivo, assemelhado à antiga CPMF. Cintra tornou-se um alvo por uma série de razões formais - entre elas, pelo fato de um subordinado ter apresentado o imposto sobre transações financeiras (ITF) como algo oficial, quando o presidente, no hospital, não havia decidido a questão.
Mas o sucedâneo da CPMF não saiu do horizonte, mesmo após o twitter do presidente: “A recriação da CPMF ou o aumento da carga tributária estão fora da reforma tributária por determinação do presidente”. Ao pé da letra já estavam. O que se estudava, o ITF, não era uma contribuição e tinha diferenças de incidência em relação à malfadada CPMF. A rigor, na discussão, aonde o ITF entrava era para substituir outros tributos, em especial a folha de pagamentos das empresas, dependendo da calibragem de sua alíquota. O aumento da carga tributária, por fim, não estava entre as cogitações do chefe da Receita e do ministro da Economia.
Além disso, o ministro Paulo Guedes é, e continua sendo um defensor da ideia. Marcos Cintra, cujo repertório tributário é marcado pela ideia fixa do imposto único, não foi escolhido à toa para o cargo, por indicação de Guedes. Ele ingressou no governo para isso, provavelmente confiante de que Guedes convenceria o presidente de que o imposto sugerido, pela sua facilidade de arrecadar tributos, poderia sem problemas fazer parte de um projeto de reforma tributária.
É sempre difícil enxergar coerência nas declarações do presidente Jair Bolsonaro, feitas por capricho ou ao sabor dos acontecimentos, em geral contraditórias e com frequência, modificadas depois. Quando Guedes saiu em público com mais ênfase em defesa do imposto sobre transações, como na entrevista que concedeu ao Valor (9 de setembro), pareceu claro, ou pelo menos pode ter sido entendido assim pelo secretário da Receita e seus auxiliares, que havia carta branca para sua criação.
As reações de Bolsonaro sobre o assunto ao longo do tempo mudaram da irritação inicial para a complacência. Em entrevista à “Folha de S. Paulo” na semana passada, Bolsonaro finalmente pareceu aquiescer. Estabeleceu como condição que deveria haver compensações ao contribuinte, caso contrário Guedes levaria “porrada”. O presidente continua confiando nos caminhos que o ministro traçou para a economia e parece ter sido convencido sobre o ITF pelos argumentos de Guedes. Apostar no enterro do imposto é arriscado.
Mas outras ideias povoam a cabeça do presidente há algum tempo, que se relacionam à Receita, mas nada tem a ver com a nova CPMF, como foi batizada. A cobrança de um parcela em atraso de um irmão do presidente foi o suficiente para que Bolsonaro dissesse com estardalhaço a denúncia de que sua família estava sendo vítima de uma “devassa” da Receita. Pouco depois, mais críticas, turvas desta vez. O “entorno” do presidente, um sujeito oculto, convenceu-o a querer trocar José Nóbrega de Oliveira, delegado da Receita do Porto de Itaguaí, por onde as milícias recebem armas e de onde partem drogas para a Europa. Houve reação do corpo técnico e o segundo homem da Receita, João Paulo Ramos Fachada, teve de deixar o cargo. O episódio reforçou a impressão de que Cintra não era, nem seria, um obstáculo para Bolsonaro, que ao mesmo tempo abriu fogo contra a superintendência da Polícia Federal no Rio e, depois, disse que poderia exonerar o delegado geral da PF, Maurício Valeixo, indicado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro.
Ainda que a teimosia de Cintra na defesa de um imposto execrado pela esmagadora maioria dos economistas tenha lhe rendido reprimendas do presidente (que se entendia com Guedes sobre o assunto), sua demissão abre caminho para que Bolsonaro mexa no último órgão de fiscalização ainda intocado por ele. Cintra mal tinha se demitido quando voltou a se falar na “reestruturação” da Receita o que pode significar apenas, o que é mais provável, uma troca de pessoas nos principais cargos de direção.
Após as mudanças no Coaf, da escolha a dedo do novo titular da Procuradoria-Geral da República, das intervenções na Polícia Federal, que não terminaram, o presidente pode colocar alguém mais alinhado a ele na Receita. Com muito barulho, aparentemente por nada, o presidente Jair Bolsonaro parece estar conseguindo aparelhar o Estado a seu gosto.
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