quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Cristiano Romero – Anatocismo

- Valor Econômico

A União tem participação, direta ou indireta, em mais de 600 empresas e precisa vender, e se livrar, de tudo isso logo

Brasílio é um sujeito que possui um patrimônio razoável, mas tem, também, uma dívida enorme, sobre a qual incidem juros altos (principalmente, porque a dívida é grande). E foi quase sempre assim: patrimônio e dívida elevados. O problema do Brasílio é que ele não consegue cortar despesas nem gerar mais receitas e, assim, economizar uma quantia para pagar os juros e, assim, impedir que a dívida cresça. Resultado: o cidadão segue aumentando os compromissos financeiros para bancar as despesas correntes, que não param de crescer.

O gerente do banco onde o Brasílio tem conta, conhecedor de suas finanças, o aconselha a se desfazer do vasto patrimônio. Diz-lhe para vender imóveis, carros de luxo, barcos, coisas que, na idade do Brasílio, não fazem mais nenhum sentido na vida dele. O sujeito tem na garagem, entre outros carros, um Alfa Romeo 76 e uma Kombi 77 amarela, “vintage”. Uma coisa o Brasílio é: honesto. Tudo o que possui está registrado direitinho em sua declaração do Imposto de Renda.

Mas, pense num sujeito apegado a coisas sem utilidade... Por isso, pediu ao gerente uma avaliação do seu patrimônio. Feito isso, descobriu que, dos 146 ativos listados em seu patrimônio, poucos realmente valem um bom dinheiro. O gerente, visto pelo Brasílio como algoz, cidadão portador de más notícias, pessoa insensível, explicou-lhe que seria bom correr para vender logo os mimos porque alguns estão “apodrecendo”.

“No mundo real, Brasílio, as mudanças estão ocorrendo de maneira muito rápida. Alguns dos seus bens podem não valer coisa alguma se não forem passados adiante com a maior brevidade possível”, advertiu o gerente, pobre homem, acusado injustamente por mostrar a seu cliente a calamidade financeira em que ele vivia. “Sou bancário e não banqueiro, Brasílio.”

O “cão babão” - como ele chamava o gerente nos momentos mais difíceis - ainda teve a pachorra de recomendar ao endividado Brasílio que, na relação do sem-número de ativos que ele possui, alguns deveriam ser simplesmente doados ou fechados. São coisas que, se mantidas, só vão lhe dar despesas. Não rendem nada, a maioria dá prejuízo, logo, o ideal, sugeriu o “coisa ruim”, é livrar-se disso o quanto antes.

Brasílio decide, então, consultar dois amigos do peito. O primeiro diz que o gerente está certo, que não faz sentido manter todo aquele patrimônio e ver a dívida crescer nos bancos. “Brasílio, você sabe o que é anatocismo? Se não sabe, corra ao dicionário. Venda tudo e pague o que puder da sua dívida. E veja: o que você levantar na venda do que possui não será suficiente para pagar a dívida, mas melhorará muito a situação. Ademais, livre dessa ‘coisalhada’ que só lhe dá despesa e com uma dívida menor, você retomará a capacidade de pagar o restante da dívida. Feito isso, terá crédito na praça novamente”, aconselhou o amigo, um indivíduo de vida organizada, pouca dívida, independência financeira, um investidor. “E tenha juízo quando puder investir novamente.”

Consultado, o outro amigo o surpreendeu no primeiro momento. Disse-lhe, um tanto consternado, que ele realmente precisava se desfazer daquele patrimônio. A surpresa se deu porque esse sujeito foi sempre contrário à venda da cobertura na Delfim Moreira, do iate estacionado na Marina da Glória e mesmo do Alpha Romeo 76 e da Kombi 77 amarela (“vintage”). “Tem que vender, Brasilinho, sua situação não é boa.”

Na verdade, esse vivente, mesmo vendo a dívida do Brasílio explodir ao longo dos anos e a despesa com juros escalar alturas impensáveis, fez sempre oposição cerrada à venda de qualquer item do vasto patrimônio, do qual ele tirava proveito como se fosse seu. Pense numa pessoa apegada a coisas alheias... Mas, aí, a boa surpresa do início da conversa se desfez num átimo porque o bom conselho veio seguido de outro, que, aplicado, anulava os bons efeitos do primeiro.

“Brasílio, meu filho, não venda tudo. Não toque, pelo amor de Deus, na cobertura do Leblon. E, olha, com metade do dinheiro da venda da Quinta em Portugal e do avião [comprado com empréstimo subsidiado do BNDES], você terá condições de investir novamente! Olha, já te falei que a nossa velha Petrobras vai montar uma fábrica de tecido no complexo petroquímico de Suape, em Pernambuco?”, disse, todo animado, o “amigo do alheio”, como o chamava um cínico que frequentava a casa do Brasílio.

“A Petrobras, Brasílio, voltará a ser a empresa com que sonhamos quando fomos às ruas exigir em alto e bom som: ‘O Petróleo é nosso!’, Que campanha aquela, não foi, Brasílio? Os americanos não queriam que o Brasil produzisse petróleo. Temiam o crescimento do nosso país, queriam que ficássemos eternamente dependentes deles. Mas, o Getúlio Vargas, espertíssimo, peitou os gringos, promoveu a maior campanha popular da história do país e, por isso, temos hoje petróleo e a Petrobras”, bradou o amigo, entorpecido pelas notícias de que a estatal, por causa da camada pré-sal de petróleo, anunciaria [no início desta década] o maior programa de investimento de uma empresa no planetinha.

“Compre correndo ações da 'nossa' Petrobras, que construirá, também em Suape, a maior refinaria de combustíveis do Brasil, um investimento que nos custará menos de R$ 3 bilhões, uma pechincha. Eu te disse que a Petrobras tem hoje a maior carteira de investimento do planeta? Acorda, Brasílio.”

Dividido, Brasílio foi ao dicionário e aprendeu que “anatocismo” significa “capitalização de juros, juros compostos ou juros sobre juros”. Descobriu, assustado, que anatocismo diz respeito a “diferentes variações linguísticas para designar um mesmo fenômeno jurídico-normativo, que tem como pano de fundo um contrato de mútuo vencido e não pago, fazendo incidir as rubricas atinentes ao inadimplemento relativo aos juros de mora”.

Nosso personagem teve o equivalente a uma epifania: se ele precisa se desfazer do que tem para pagar dívidas, não faz sentido investir em coisa alguma. Isso vale também, pensou, para a União, que possui 637 participações em empresas controladas diretamente, suas subsidiárias, e coligadas, mas hoje não tem dinheiro para pagar os juros de uma dívida que beira os 80% do PIB.

“Por que o Estado brasileiro tem mais de 140 estatais se não consegue educar as crianças decentemente nem oferecer serviços de saúde aceitáveis?”, questionou-se Brasílio, determinado a partir dali a estudar artimética novamente.

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