domingo, 13 de outubro de 2019

Dorrit Harazim - O tuíte que custou milhões

- O Globo

Para o regime comunista de Pequim, quem mexe no vespeiro Hong Kong arca com as consequências

O blogueiro Liu Yang Cary não perde um jogo da NBA, a liga americana de basquete que desde o ano olímpico de 2008, quando fincou tentáculos na China, nunca mais parou de crescer. Estima-se que, somando todas as mídias (TV, internet e smartphones), mais de 800 milhões de chineses assistiram à temporada 2018/2019 da NBA — audiência maior do que nos Estados Unidos. Apesar de sua paixão pelo basquete, contudo, Liu, que é torcedor roxo do Lakers de Los Angeles, abriu mão da rara chance de ver seu ídolo LeBron James jogar ao vivo, em Xangai, na noite de quinta-feira. Rasgou o ingresso que comprara por 16.000 yuans (mais de R$ 4.400) e postou o vídeo do gesto para seus cinco milhões de seguidores no Weibo, a versão chinesa do Twitter. “Estou com o coração partido... Eles não nos entenderam, não compreenderam nossos sentimentos...”.

O “eles” da frase não eram LeBron ou o Lakers, era mais. Mais do que a NBA toda. Foi um eco do milenar sentimento chinês de ser humilhado pelo Ocidente. E foi desencadeado por um tuíte espontâneo postado de um quarto de hotel em Tóquio.

Seu autor, Daryl Morey, se encontrava no Japão para dois amistosos pré-temporada do Houston Rockets, do qual é gerente-geral. Talvez por ser noite de domingo, baixou a guarda e retransmitiu o slogan “ Lute pela Liberdade. Apoie Hong Kong”, do movimento pró-democracia que há 18 semanas convulsiona o território autônomo da China. Poderia ter sido apenas um dos mais de 600 milhões de tuítes diários que circulam na globosfera sem fazer ruído — até por ter sido retirado do ar pelo próprio Morey poucos segundos depois. Mas era tarde demais.

Para o regime comunista de Pequim, quem mexe no vespeiro Hong Kong arca com as consequências. E para o 1,4 bilhão de chineses que admiram o Houston Rockets por ter sido o time que revelou ao mundo Yao Ming — a primeira estrela chinesa da NBA — foi um choque.

Seguiu-se uma tosca avalanche de tentativas de gerenciar a crise. “Não tive a intenção de ofender os fãs e amigos do Rockets na China”, corrigiu o causador do estrago. Coube ao mais celebrado jogador do time, o ala James Harden (32 jogos com média de 30 pontos) proclamar seu “amor à China”, enquanto o armador Russell Westbrook apareceu numa coletiva trajando túnica chinesa. O comunicado oficial da NBA teve duas versões. “ Reconhecemos que o ponto de vista expresso por Daryl Morey ofendeu tantos amigos nossos na China, o que lamentamos ”, dizia o texto em inglês. Já o tom da versão em chinês foi outro: “ Estamos muito decepcionados pelas palavras impróprias de Daryl Morey, que indubitavelmente feriram fundo os sentimentos dos nossos fãs chineses ”.

Nada de muito novo. A lista de empresários e grandes corporações que amansam tom e estratégia para continuar a fazer negócios na China é longa e eclética — Disney, Apple e Google, megapatrocinadores olímpicos como Coca-Cola, Dow e Visa, a gigante da indústria de videogames, Blizzard. Em artigo recente na “Foreign Policy”, o editor James Palmer relembra que Mark Zuckerberg já praticou jogging no ar poluído de Pequim, elogiou o livro ilegível do presidente Xi Jinping e convidou o líder comunista a sugerir um nome honorífico chinês para o seu bebê que nasceria em 2015. Xi declinou, seco. E o Facebook continua banido da China desde 2005. A Nike, fabricante exclusiva dos uniformes da NBA, e cuja receita na China representa 16% do lucro do grupo (ou 36% antes de impostos, segundo o “Financial Times”), preferiu ficar quieta à espera de dias melhores.

Por ora, eles são sombrios. Os 11 grandes parceiros locais da NBA romperam seus contratos com a Liga. A transmissão pela TV estatal de todos os jogos da NBA está cancelada , e a extensa gama de produtos da franquia Rockets foi removida das lojas físicas e sumiram do comércio on-line. A Tencent, o maior portal de internet da China e dono dos direitos digitais da Liga, excluiu até mesmo o nome Rockets de seu noticiário —isso, apesar de ter renovado recentemente a parceria por US$ 1,5 bilhão.

Na ponta americana do mundo, onde a NBA é instituição nacional e permite que seus atletas protestem contra o racismo, a violência policial e outros temas polêmicos, a grita foi oposta. Políticos dos dois partidos que, de resto, há muito não se entendem em torno de nada, emitiram declarações de repúdio comuns à deferência da Liga para com Pequim. “A NBA escolheu o talão de cheque no lugar de seus princípios e nossos valores. Deveríamos todos falar alto em apoio aos que defendem seus direitos”, tuitou a pré-candidata democrata Elizabeth Warren. “Deplorável. A NBA permite que a China puna um cidadão americano pelo uso da liberdade de expressão para proteger seu mercado”, ecoou o republicano Marco Rubio.

O caso já dura uma semana, e a China não tem pressa. Deu o recado. Hong Kong não lhe é banal.

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