domingo, 13 de outubro de 2019

Míriam Leitão - A estupidez da censura

- O Globo

A censura é terrível. Ela entrega um poder arbitrário ao burocrata que sempre toma decisões estúpidas. Ela assedia as mentes de produtores culturais, escritores, artistas e vai construindo a teia dos impossíveis — cheia de “melhor não” ou “isso eles não aceitarão” — que definimos como autocensura. A Constituição que o Brasil escreveu no pacto social da democracia não a tolera. “Cala a boca já morreu”, sentenciou a ministra Cármen Lúcia. Contudo, ela está de volta.

A censura se infiltra em atos como o veto à propaganda com jovens negros e descolados porque o presidente da República viu neles algo que ofendia as famílias. Avança quando se entrega o assunto cultura a um ministro capaz de qualquer volteio nas leis para bajular o novo chefe, como, por exemplo, banir temas em edital público. Ela se espalha quando o Estado vai criando bloqueios à liberdade de expressão usando subterfúgios como a defesa de supostos valores morais. Ela fica escancarada quando o presidente de um banco público, como a Caixa, diz que não aceita “posicionamento político” em espetáculos que patrocina. Será preciso voltar mais de dois mil anos e censurar os autores gregos que se atreveram a usar as tragédias para expor seus “posicionamentos políticos” sobre dilemas eternos como os limites ao poder despótico.

No Brasil de hoje, essa é a tragédia. Governantes de ocasião pensam que podem reprimir tudo o que não lhes agrada. O presidente usa sua métrica medíocre para classificar o que pode ser permitido ou o que é proibido com o dinheiro público. Como se fosse dele, o dinheiro. Os impostos são pagos por todos os brasileiros. O prefeito vira as costas para as festas da cidade. A professora Silvia Finguerut, coordenadora de projetos da Fundação Getúlio Vargas, diz que o estudo “Rio de Janeiro a Janeiro”, organizado pelo Ministério da Cultura no governo Temer com apoio técnico da FGV, deixou claro que as festas populares têm grande retorno econômico. Só no turismo, o carnaval do Rio teve um impacto de R$ 2,8 bilhões na economia. Ao todo, o evento levou aos cofres públicos tributos no valor de R$ 179 milhões.

— Quando o prefeito deixa de apoiar o carnaval, isso terá reflexo na estrutura necessária para o evento. E a festa tem grande efeito sobre o turismo, movimenta vários setores da economia. Petrobras, Caixa, Banco do Brasil sempre tiveram muita presença na área cultural. Desde que o Brasil se libertou da ditadura este é o momento mais ameaçador para a área cultural — diz a professora Silvia.

Nos vários estudos que o ex-ministro e deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) coleciona, feitos entre outros pela FGV e a Firjan, a conclusão é sempre que o retorno de cada real investido na área cultural é muito grande. Em 27 anos de Lei Rouanet em cada R$ 1 de renúncia fiscal retornaram para a sociedade R$ 1,59. Mesmo quando se separa o núcleo cultural das outras atividades da economia criativa se vê que a cadeia produtiva é intensa e a criação de emprego é alta. Portanto, não é por perda fiscal que se persegue a cultura. É por autoritarismo.

— Temos tido censura às obras culturais com uma visão personalista, autoritária. Tudo está associado ao ataque às outras instituições que estamos vendo desde o início do governo. Bolsonaro quer assegurar que seu capricho prevaleça — diz Calero.

Há uma mistura explosiva: a censura ameaça a democracia, o ataque à cultura mina um setor econômico, os limites postos por este governo à arte fazem com que a sociedade não possa se ver de forma completa. O economista Leandro Valiati, professor visitante de economia da cultura nas universidades de Sorbonne e Queen Mary, explica que é um erro econômico banir segmentos da sociedade das manifestações culturais, como se tenta fazer com o grupo LGBT.

— A diversidade é um valor fundamental, você só estrutura mercados com diversidade. Não faz o menor sentido o controle governamental sobre o conteúdo, nem econômico nem politicamente. O Estado como regulador tem que fazer o oposto: garantir a diversidade e multiplicidade dos mercados — diz Valiati.

Nas colunas de ontem e de hoje trouxe o pensamento de quem tem estudado o assunto para mostrar que é burrice econômica querer encurralar a cultura. Ela tem um valor tangível e que tem sido estudado e medido. Para além disso, há o valor intangível das manifestações artísticas na vida de qualquer sociedade. A censura nós a conhecemos na ditadura. Ela é estéril e estúpida.

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