- O Estado de S.Paulo
Cada tolice diplomática põe em risco muitos bilhões de dólares de exportação brasileira
Dois navios iranianos carregados de milho brasileiro são parte de uma história de subserviência do presidente Jair Bolsonaro a seu suposto amigo Donald Trump. Um novo capítulo dessa história ocorreu na última semana, quando o presidente americano mostrou, talvez chocando os mais inocentes, quem dita regras no jogo entre guru e seguidor, entre chefe e comandado. O comandado engoliu a lição e comportou-se tão bem quanto se havia comportado no episódio dos navios. Os dois barcos tinham vindo do Irã trazendo ureia e deveriam voltar com cerca de 100 mil toneladas de milho. Chegaram no começo de junho e ficaram parados em Paranaguá até o fim de julho, à espera de combustível. Recusando abastecimento, a direção da Petrobrás alegou o risco de violar as sanções contra o Irã determinadas pela Casa Branca. O combustível foi fornecido, afinal, por determinação da Justiça. E dezenas de milhares de toneladas de cereal brasileiro foram levadas aos compradores. O governo do Brasil, disse na época o presidente Bolsonaro, “está alinhado, sim, com o governo de Donald Trump”.
Estaria alinhado, no entanto, com os interesses brasileiros? De janeiro a junho o Brasil havia exportado US$ 1,3 bilhão para o mercado iraniano e importado apenas US$ 26 milhões do Irã. Até setembro as vendas para lá chegaram a US$ 1,9 bilhão, 1,16% do total faturado com mercadorias. Vários países sul-americanos compram bem menos do Brasil.
Medo do chefe, obediência espontânea e devota ou combinação dos dois sentimentos? Todas essas motivações podem ter pesado, mas a devoção ao guru tem sido certamente um fator dominante. A declaração de alinhamento ao líder, naquele momento, foi apenas uma entre muitas afirmações públicas de tipo semelhante.
A crença num vínculo até pessoal tem sido repetida pelo presidente Jair Bolsonaro. Já foi mencionada várias vezes para justificar a indicação do filho Eduardo para embaixador em Washington. Não se trata apenas de oferecer ao pimpolho um filé mignon, um fofo desejo paternal admitido publicamente, mas de atribuir a missão a uma pessoa capaz de receber atenção especial na Casa Branca – pelo menos segundo o presidente brasileiro.
Faltou combinar com a Casa Branca a reciprocidade nessa relação tão carinhosa da parte de Brasília. Em março, o presidente Trump prometeu a Bolsonaro apoiar o ingresso do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A promessa foi repetida em maio, em reunião da OCDE em Paris, e em julho, no Brasil, na visita do secretário do Comércio, Wilbur Ross. Na primeira ação concreta, em agosto, a Casa Branca apoiou a admissão de Argentina e Romênia.
A promessa continua valendo e nunca foi descumprida, segundo explicaram os governos americano e brasileiro. Argentina e Romênia estavam à frente do Brasil na fila de ingresso e todos sabiam disso. O Brasil será apoiado quando chegar o momento, reiterou o governo dos Estados Unidos, numa declaração repetida e endossada por autoridades brasileiras. Tudo isso pode ser verdade, mas os pontos politicamente importantes são outros e ficaram esquecidos, ou quase, entre brasileiros e americanos, no falatório sobre o assunto.
Nenhuma regra impediu o governo americano de indicar apoio a um número maior de países. A decisão de apontar só dois candidatos, Argentina e Romênia, foi da Casa Branca. A administração americana já havia defendido, contra os governos europeus e a direção da OCDE, uma expansão lenta do quadro de sócios da entidade. Várias vezes, desde março, o governo brasileiro havia alardeado o apoio de Trump ao ingresso do Brasil na OCDE. Sempre se havia transmitido, nessas manifestações, a ideia de uma promessa para ser cumprida em pouco tempo.
Bolsonaro e ministros podem ter disfarçado, mas houve, sim, uma decepção imposta ao governo brasileiro. Ao mencionar a proposta como ainda válida, o presidente Trump esclareceu, mais uma vez, como ele entende o relacionamento com Bolsonaro: o mais forte manda, impõe as condições e decide quando e como cumprir promessas, sem levar em conta supostos vínculos pessoais.
Terá Bolsonaro entendido? Insistirá, ainda, na indicação de seu filho para a embaixada, como se acreditasse numa política americana baseada em relações pessoais? Seu filho será mais importante para Trump do que os assessores, vários deles de alto nível, descartados pelo presidente até por mensagem de Twitter?
O presidente brasileiro parece nunca haver entendido sua relação com Trump. Além disso, certamente nunca entendeu a relação entre diplomacia e interesse nacional, até porque lhe falta a noção de questões cruciais para a vida brasileira. Não é preciso ter lido muitos livros de economia para perceber a importância da segurança econômica externa.
No caso do Brasil, esse tipo de segurança está fortemente associado a um vigoroso e superavitário comércio externo de bens. Disso depende – e dependerá por muito tempo – a manutenção de transações correntes em boas condições, com déficits moderados e facilmente financiáveis. Igualmente essencial é a preservação de reservas cambiais em volume suficiente para atenuar o efeito de choques externos. Crises cambiais, como insistia o excelente Mário Henrique Simonsen, põem o País de joelhos.
A solidez externa é minada quando o presidente Bolsonaro põe em risco as exportações, especialmente as do agronegócio, maior esteio do saldo comercial. Cada bobagem sobre a questão ambiental, como confundir devastação com exercício de soberania, favorece o protecionismo, especialmente o europeu. Cada desfeita a compradores – pensem na China e nos países muçulmanos – pode comprometer muitos bilhões de dólares. Algumas figuras do governo devem conhecer esses fatos. Se conseguissem explicá-los ao presidente, fariam bom trabalho.
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