- O Globo
SANTIAGO - Enormes multidões tomam as ruas de diversas cidades chilenas nesta sexta-feira, na manifestação que foi apelidada de “a maior marcha do Chile” , após sete dias de tensões provocadas por protestos que levaram o presidente Sebastián Piñera a decretar estado de emergência no último sábado, militarizando a segurança pública e impondo toque de recolher em várias cidades. Inicialmente motivados por um aumento da passagem do metrô de Santiago , os protestos foram engrossados por demandas mais amplas, incluindo reformas nos sistemas de aposentadoria, educação e saúde.
Na capital, o ato, que foi convocado pela internet com a hashtag #MarchaMasGrandedeChile e acontece sem uma liderança clara, já leva mais de um milhão de pessoas à Praça Itália, segundo cálculos da polícia. Os números são os maiores já registrados em uma manifestação no país. A região metropolitana de Santiago tem 6,3 milhões de habitantes, um terço da população chilena de 18 milhões.
A intendente da região de Santiago, Karla Rubilar, indicada pelo Executivo, mas que recentemente deixou a Renovação Nacional, partido de Piñera, disse em sua conta no Twitter: "O Chile vive hoje um dia histórico. A região metropolitana é protagonista de uma marcha pacífica de cerca de 1 milhão de pessoas que representam o sonho de um novo Chile, de maneira transversal e sem distinção. Mais diálogo e marchas pacíficas exige o nosso país". Ela acrescentou, em outra mensagem, que "o que funcionou há 30 anos já não funciona mais, temos que estar à altura".
Protestos pacíficos acontecem em dezenas de outras cidades, incluindo o balneário de Viña del Mar e Punta Arenas, última cidade da Patagônia chilena.
Os manifestantes caminham pelas ruas, cantando músicas da resistência à ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) e portando bandeiras e faixas. As palavras de ordem incluem "O Chile despertou!" e "O povo unido, jamais será vencido". A ausência de lideranças impede uma pauta totalmente definida, mas eles exigem melhores serviços públicos e reformas econômicas, além da apuração de abusos cometidos pela polícia e pelas Forças Armadas desde que o estado de emergência passou a vigorar.
— Provavelmente será a maior manifestação de todos os tempos. Pedimos justiça, honestidade, ética no governo, não é que desejemos socialismo, comunismo. Queremos menos empresas privadas, mais Estado. As propostas que ele [Piñera] fez vão arruinar o orçamento para subsidiar empresas privadas — disse à AFP Francisco Anguitar, 38 anos, desenvolvedor de programas de computadores, referindo-se à "agenda social" lançada pelo presidente.
Famílias inteiras, incluindo muitas crianças, estavam presentes nos protestos.
— Aqui no Chile, se você não tem dinheiro, não pode optar por nada de qualidade, saúde ou educação. Eu expliquei isso aos meus filhos e é por isso que viemos hoje — disse à Reuters Agustín Valenzuela, 44 anos, na marcha de Santiago. — Tudo aqui é privatizado, é um sistema que enriquece às custas de todos nós. Existem muitas injustiças, são baixas pensões, problemas de saúde, tudo é um negócio.
Na terça-feira, Piñera anunciou na TV aumentos para diferentes categorias de pensões, subsídios aos gastos com saúde e um aumento no imposto de renda de quem ganha mais do que o equivalente a R$ 44 mil. A agenda foi criticada por manifestantes e acadêmicos, que defendem uma reforma da Constituição herdada da ditadura, que passou para o setor privado a administração de boa parte dos serviços públicos, incluindo as aposentadorias. Em sua passagem pelo palácio presidencial de La Moneda, milhares de pessoas insultaram o presidente e os soldados que cercam a área.
— Nosso modelo, que não é exemplo pra ninguém, fracassou. É um modelo econômico muito neoliberal, com salários baixos para os trabalhadores, aposentadorias que não são dignas. Imagine que sete famílias controlam nossa pesca, são muitos abusos que as pessoas não querem suportar mais — disse ao GLOBO a deputada pelo Partido Socialista Maya Fernández Allende, neta de Salvador Allende, o presidente deposto no golpe de 1973.
Na noite desta sexta-feira, completam-se sete dias desde que os protestos, que começaram no início do mês contra o aumento de 30 pesos (R$ 0,17) no metrô, ganharam uma nova força, até se transformarem na maior mobilização popular no Chile desde o fim da ditadura. O governo de Piñera decretou estado de emergência na madrugada de sábado, dia 19, depois que estações de metrô foram incendiadas e prédios públicos, atacados.
A Junta de Defesa Nacional encarregada da segurança de Santiago decretou no começo da tarde desta sexta-feira o sétimo toque de recolher consecutivo à noite, mas determinou que ele começará uma hora mais tarde, a partir das 23h, até as 4h de sábado. As cidades de Valdivia, Tocopila e Mejillones anularam seus toques de recolher, apesar disso, tornando-se as três primeiras comunas chilenas a retirar a restrição de circulação.
Em Valparaíso, sede do Legislativo, protestos no começo da tarde deixaram dois policiais feridos e levaram Iván Flores, presidente da Câmara, a suspender todas as atividades marcadas no Congresso Nacional, em caráter, segundo ele, “preventivo”. Fontes do Congresso ouvidas pelo GLOBO disseram que Piñera deve anunciar uma reforma no ministério do fim de semana, mas que setores mais duros de sua aliança se opõem a reformas mais profundas do que as que já foram anunciadas.
Mais cedo, motoristas e caminhoneiros engarrafaram rodovias que ligam Santiago ao restante do país, para pedir uma redução nas elevadas taxas de pedágio, congestionando as vias na hora do rush.
Pesquisa de opinião
Uma pesquisa realizada pelo instuto Ipsos divulgada nesta sexta-feira apurou que 57% da população chilena entende que os protestos são o começo de uma mudança maior que acontecerá no Chile em médio prazo, e que 30% acreditam que o processo de mudanças já começou, enquanto só 10% acham que não haverá mudanças significativas no futuro do país.
Para 67% da população, os protestos acontecem porque “as pessoas se cansaram do custo de vida, das altas de preços, do nível dos salários, da qualidade da saúde, do tamanho das aposentadorias”. Em seguida, 16% entendem que a classe política não foi capaz de ouvir às demandas populares. Só 10% acham que os protestos foram uma oportunidade para a violência e o vandalismo. Ainda assim, 61% acharam o toque de recolher decretado por Piñera como justificado, enquanto 34% discordaram da medida. (Colaborou Janaína Figueiredo )
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