Nova Carta é primeiro passo para pacificar país, mas são necessárias outras medidas, como agenda social e investigações de violações dos direitos humanos, dizem analistas
André Duchiade | O Globo
O acordo entre quase todos os partidos do Chile que abre caminho para uma nova Constituição era inimaginável há pouquíssimo tempo, dizem analistas políticos ouvidos pelo GLOBO. Foi o temor de uma mudança de regime, com as tensões atingindo um ponto de saturação na terça-feira, quando mais de 20 quartéis de forças de segurança foram atacados, que levou a coalizão de direita liderada por Sebastián Piñera a mudar de posição e aceitar a possibilidade de uma Assembleia Constituinte inteiramente renovada e uma Carta escrita do zero, com o abandono do texto redigido sob a ditadura de Augusto Pinochet.
— O acordo era impensável há uma semana. Que ele tenha sido alcançado é algo que tem muito a ver com o medo das elites, que tinham a sensação de que estávamos à beira de uma mudança de regime, inclusive com o colapso do Estado — afirmou o cientista político da Universidade Católica Juan Pablo Luna.
Todos os cientistas políticos concordam que o gesto feito pela classe política chilena é contundente e deve descomprimir as ruas, canalizando as mobilizações para uma via institucional. Ainda assim, outras respostas são necessárias para restabelecer a harmonia social, como a responsabilização por violações de direitos humanos e medidas sociais imediatas.
O apoio às manifestações, segundo uma pesquisa do Centro de Estudos do Conflito e Coesão Social (Coes), é de mais de 85% dos chilenos, e mais de 80% deles manifestaram-se favoráveis a uma nova Constituição. A aprovação do governo de Sebastián Piñera, enquanto isso, despencou para 9,1%. Os índices ajudam a explicar por que o governo agarrava-se à ideia de que a nova Carta fosse escrita pelo atual Parlamento e resistia a aceitar a hipótese de uma Assembleia Constituinte eleita com mandato exclusivo.
— Muitos partidos de oposição querem uma Assembleia Constituinte totalmente eleita, porque é claro que o partido do governo irá perder a eleição. O governo é reativo a uma Constituinte totalmente renovada porque está em situação política muito desfavorável — afirmou Gabriel Negretto, cientista político da Universidade Católica, pouco antes do acordo ser anunciado.
Em meio ao impasse, Piñera cedeu o protagonismo da decisão ao Parlamento, deixando que os partidos chegassem a um acordo sem a sua liderança. Durante as discussões, o partido mais resistente a mudanças (à exceção do Partido Comunista, que não quis participar das reuniões) foi a União Democrática Independente (UDI), sigla herdeira do pinochetismo fundada por Jaime Guzmán, o idealizador da atual Constituição.
Na noite de quinta-feira, a UDI, que faz parte da coalizão governista, chegou a travar o diálogo, com a exigência de que o texto atual fosse mantido válido quando, durante o processo constituinte, uma cláusula não fosse apoiada por dois terços dos deputados constituintes. O partido acabou por abandonar a exigência, e a consulta perguntará se, caso aprovada, a Convenção Constitucional — nome eufemístico para Assembleia Constituinte, para reduzir o peso da derrota — será de composição inteiramente nova ou mista.
— A resposta para por que a União Democrática cedeu tem muito a ver com a violência que viveu o país, e com os riscos que isso implica para a economia, a direita e os setores empresariais. A economia se viu muito afetada pelos dias de manifestação, e a UDI teve medo da ruptura da institucionalidade, o que fez com que cedesse. O país esteve realmente em suspenso durante várias semanas — afirmou a socióloga política da Universidade Andrés Bello Stéphanie Alenda.
Segundo Gabriel Negretto, esta será a primeira vez no mundo em que um plebiscito constituinte perguntará simultaneamente se a população quer mudar a Carta e, em caso positivo, com que tipo de assembleia. O quórum de dois terços para aprovar cada artigo da Constituição é considerado alto pelos especialistas, e nunca foi desfrutado por nenhum partido no Parlamento desde a redemocratização.
Voto obrigatório
Isto significa, segundo Luna, que a Carta deve ser mais enxuta, pois os artigos devem ser aprovados por uma ampla maioria. A obrigatoriedade do voto, num país que, em suas duas últimas eleições nacionais, teve menos de 50% de comparecimento às urnas, pode reconfigurar o mapa político. Diversos mecanismos do sistema político, social e econômico do Chile que estavam na lei de 1980 devem desaparecer.
— O amplo consenso deve levar a uma Constituição mínima, e a regulamentação deve passar a ser feita através de leis comuns, que vão estar submetidas à vontade popular e democrática. As leis não estarão mais escritas em pedra — afirmou Luna, em referência ao alto quórum de 5/7 exigido hoje para mudanças constitucionais.
Todos os analistas concordam que a mudança constitucional deve ser eficaz para abrandar as ruas e apaziguar os ânimos num curto prazo. Alenda afirma que a mudança não deve ser “mecânica ou automática, mas um acordo deve ter o efeito de diminuir os protestos”. Ela destaca, contudo, que os episódios de violência, com saques e ataques a instalações das forças de segurança, seguem “outra lógica”, contra o Estado, e que esta é imprevisível.
— O acordo não deve eliminar de todo os atos de violência e vandalismo, mas mesmo assim deve descomprimir a situação. Uma grande parte da sociedade está muito satisfeita — afirmou ela.
De acordo com Carlos Meléndez, cientista político da Universidade Diego Portales e pesquisador do Coes, o “mais potente do acordo é a decisão de considerar o voto obrigatório”, o que torna o processo mais participativo.
— Foi dado um gesto positivo para a sociedade e com isso deve reduzir a intensidade da violência, mas não a mobilização. A sociedade chilena segue e seguirá mobilizada, mas foi encontrado um mecanismo para canalizar este momento refundacional da História chilena — disse Meléndez.
Ainda assim, destacam os pesquisadores, a pressão das ruas pode recrudescer e voltar a se intensificar. Para que isso não aconteça, Negretto afirma serem necessárias, no curto prazo, duas agendas: uma “de paz”, que investigue violações de direitos humanos por agentes do Estado, incluindo um número altíssimo de mortos e feridos, e outra social, com medidas nas áreas de saúde, educação e no sistema de pensões. Negretto também diz ser necessário deixar claro que os grupos que protestam são diversos entre si, e que algumas ações de vandalismo são incompatíveis com um Estado de direito. Para Luna, a Constituinte “compra um pouco de tempo, mas não muito”.
—Abriu-se mais ou menos um caminho, e a possibilidade de pensar e negociar um novo pacto social. O Chile ainda vai sofrer um choque econômico muito forte dos protestos, e verá seus investimentos diminuírem. Ao mesmo tempo, o país precisa de um novo pacto para crescer com mais igualdade e sustentabilidade. É possível, assim, que o governo adote políticas keynesianas [intervencionistas] daqui para a frente, mas o resultado é bastante aberto — afirmou Luna.
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