- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Biblioteca do Exército reedita conferência,de 70 anos atrás, em que Gilberto Freyre alerta contra os riscos de se terceirizar todas as soluções da República às Forças Armadas
“Por que o Exército, que é forte e tem armas, não acaba com as favelas, expulsando, do alto dos morros, as multidões que hoje vivem, nos barracos, vida de bichos imundos? Por que o Exército, que tem tanks e metralhadoras, não acaba com o Comunismo? Por que o Exército não acaba com o jogo de “pif-paf ”? Por que o Exército não resolve o problema da falta de carne? Ou o da falta de leite? Ou o da exploração do peixe e dos legumes? Ou o dos muitos suicídios? Ou o dos muitos assassinatos? Ou o do tráfego do Rio de Janeiro?”.
Quando proferiu, em 1948, a conferência “Nação e Exército”, a convite da Escola de Estado-Maior do Exército, Gilberto Freyre não tinha como imaginar que sua provocação um dia se tornaria realidade. Quando deu início às tratativas para a reedição da conferência, publicada como livro em 1949, o general Richard Nunes, então diretor da escola, não tinha como imaginar que deixaria aquele cargo para assumir a Secretaria de Segurança do Rio e realizar a profecia anunciada por Freyre como caricatura do que aconteceria se o país não parasse de terceirizar para o Exército a solução de todos os males.
Entre a decisão de reeditar o livro e seu lançamento, em setembro passado, pela editora Biblioteca do Exército, o vaticínio de Freyre se incorporou num capitão do Exército que, eleito presidente, levou para o primeiro escalão de seu governo um número maior de generais do que quaisquer dos governos militares. A saída de um a um do ministério não tem privado Jair Bolsonaro de fazer remissão às Forças Armadas como recurso de um governo desaparelhado para enfrentar desde as queimadas na Amazônia até o risco de contágio do continente sublevado.
Quando Freyre fez a conferência, o Exército havia sido protagonista do fim tanto da monarquia quanto da República Velha. O sociólogo teve uma relação tensa com o governo Getúlio Vargas. Chegou a ser preso depois de bater de frente com o interventor do Estado Novo em Pernambuco, Agamenon Magalhães. Depois virou um interlocutor de Getúlio e de suas intervenções no patrocínio de manifestações culturais, das festas da padroeira às ligas das escolas de samba. O sociólogo pernambucano apoiou o golpe de 1964, mas, nos derradeiros anos da ditadura, tornou-se um crítico do regime.
Na paisagem bolsonarista, o verde-oliva do ministério esmaeceu sem que se divise o formato da nova organização do governo. Bolsonaro chega ao final do primeiro ano de seu mandato mais afastado do que jamais esteve daquele que um dia foi chamado de “poder moderador” do seu governo. O bombardeio começou pelo então secretário de governo, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido pelo presidente depois de se confrontar com o que chamou de “gangues digitais” do Palácio do Planalto, e atingiu mais cinco generais, Maynard Santa Rosa (Secretaria de Assuntos Estratégicos), Franklimberg de Freitas (Funai), Juarez Cunha (Correios), João Carlos Jesus Corrêa (Incra) e Marco Aurélio Vieira (Secretaria Especial de Esporte).
Dois dos generais que seguem nos cargos foram frontalmente contrariados pelo presidente da República ou por seus filhos. Augusto Heleno Ribeiro manteve-se no Gabinete de Segurança Institucional a despeito de ter sido pessoalmente responsabilizado pelo vereador Carlos Bolsonaro no episódio da apreensão de 39 kg de cocaína num avião da comitiva presidencial.
Luiz Eduardo Rocha Paiva segue alfinetado na Comissão de Anistia. Tanto pelo vereador Carlos Bolsonaro (“não lidera nem guerra de travesseiro”), quanto pelo próprio presidente da República, que, agastado com a solidariedade prestada pelo militar no episódio dos nordestinos “paraíbas”, lhe endereçou o epíteto de “melancia”.
Na contramão da saideira, Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, antecipou sua exoneração do Comando Militar do Sudeste - e do Alto Comando do Exército - para ajudar o amigo presidente na articulação política. Esbarra, no entanto, no desarranjo orgânico das relações dos Bolsonaro com as instituições.
O major da Polícia Militar do Distrito Federal, Jorge Antonio de Oliveira, titular da Secretaria-Geral da Presidência depois que o general Floriano Peixoto foi deslocado para os Correios, segue cada dia mais influente junto ao gabinete do presidente da República, como se comprovou na saída de Santa Rosa.
Na mais recente fonte de desgaste, o projeto de reestruturação das carreiras militares, interlocutores do Ministério da Defesa queixam-se de terem sido abandonados pelo governo na defesa do projeto após a reação dos militares de baixa patente, base bolsonarista por excelência, contra o texto. A um passo de ser remetido a plenário, de onde dificilmente escaparia sem modificações, o projeto teve sua tramitação concluída na Câmara e enviado, posteriormente, ao Senado, por intervenção direta do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O lançamento de “Nação e Exército” nesta conjuntura levou a “Sociedade Militar”, revista eletrônica sem vínculo com as Forças Armadas, mas dirigida a oficiais da ativa e da reserva, a situar a iniciativa como marco do distanciamento da “linha progressista” das Forças Armadas do governo. “Quando você ouvir falar em progressistas, pode saber que são comunistas”, disse o guru do bolsonarismo Olavo de Carvalho, em vídeo no YouTube, em que vociferou contra suposto “abandono” do governo pelos militares.
Era outro o Brasil quando Olavo de Carvalho, a convite do então líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Bruno Maranhão, participou na Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, na companhia do ex-ministro Aldo Rebelo e do escritor Jacob Gorender, ex-dirigente do PCB, de um debate sobre o centenário de Gilberto Freyre. Corria o ano 2000 quando o atual guru bolsonarista e Rebelo defenderam o legado de Freyre, sob a crítica de Gorender.
A interpretação da revista que Olavo se ocupou em responder é rechaçada pelo Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex), hoje chefiado pelo general Richard Nunes, maior entusiasta da reedição da conferência. O Cecomsex é a voz de Edson Leal Pujol, comandante mais discreto do que os generais a quem tem sucedido.
Foi ele quem assumiu o Comando Militar do Sul quando o general Hamilton Mourão, hoje vice-presidente, após ter criticado o governo da então presidente Dilma Rousseff por corrupção e homenageado o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado por tortura pela 23ª Vara Cível de São Paulo, foi removido. A lei do silêncio se estendeu ao Comando do Exército. Pujol não se pronuncia sobre a conjuntura nem permite que seus subordinados o façam nas redes sociais.
Quando o Supremo deliberou contra a prisão em 2ª instância, decisão que permitiu a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o comandante não reprisou o general Eduardo Villas Bôas que, no exercício do cargo, deixou para a história o “tuíte” em que, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula, se disse atento à sua “missão institucional”. Quem se arvorou à condição de herdeiro (sem tropa) de Villas Bôas, foi Mourão, ao questionar o Estado de direito em “tuíte” no dia seguinte à decisão do STF do início do mês.
Mourão, que tem viajado para receber títulos de cidadão em rincões de todo o país, se reaproximou das discussões internas de seu partido, o PRTB de Levy (Aerotrem) Fidelix, sobre as próximas eleições. O presidente da República mandou espalhar que prefere o ministro da Justiça, Sérgio Moro, como seu candidato a vice em 2022.
Do Exército, o único pronunciamento desde o “tuíte” de Mourão foi o artigo de Pujol, publicado às vésperas do aniversário de 130 anos da República. Com título - e conteúdo - alusivos ao livro de Freyre, “O Exército, a Nação e a República” (“O Estado de S. Paulo”, 12/11), o texto sublinha a atuação antioligárquica do Exército, da oposição aos gabinetes imperiais à recusa em participar da caçada a escravos fugidos, e defende a profissionalização da Força.
Villas-Bôas, que depois de uma traqueostomia voltou a despachar no Gabinete de Segurança Institucional, publicou, dois dias depois, no mesmo jornal, artigo em que também cita o livro de Freyre. O general, que lança, no início de dezembro, com o apoio da Confederação Nacional da Indústria e da agência FSB, um instituto que leva seu nome, não abre mão, porém, de dizer que não há problema no território nacional que as Forças Armadas “não possam - ou não devam - contribuir para sua solução”.
É o mesmo tom com o qual, 70 anos atrás, o diretor da Escola de Estado-Maior do Exército, general Tristão Alencar Araripe, conclui o posfácio à conferência de Freyre tomando de empréstimo a única concessão do sociólogo, ao longo do texto, à possibilidade de intervenção da força militar: “se faltar, porém, nos dias excepcionalmente difíceis que começamos a atravessar, essa organização civil que saudavelmente complete a militar”.
Ao contrário de Villas-Bôas e Alencar Araripe, que passaria à reserva, em 1964, como um dos últimos marechais do Exército, o general Richard Nunes, em sua apresentação do texto reeditado, limita-se a comentar a contribuição do “pensamento crítico” de Freyre para a compreensão do Exército na formação da nacionalidade.
“O país onde o Exército seja a única, ou quase a única, força organizada necessita de urgente organização ou reorganização do conjunto de suas atividades sociais e de cultura para ser verdadeiramente nação. Nação desorganizada não é Nação: é apenas paisagem”, escreveu Freyre, no texto que completa 70 anos como uma premonição da paisagem bolsonarista.
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