- Folha de S. Paulo
Quem quer se tornar liderança política tem de se apresentar para o debate
Estamos vivendo um Pirandello ao contrário no Brasil. O autor italiano criou “Seis Personagens à Procura de um Autor”. Nunca vi a encenação da peça. O texto é uma delícia. Por aqui, temos “Seis Autores à Procura de uma Personagem”. O texto é uma porcaria. Faço a inversão exata para apelar a alguma graça. Na verdade, não são seis, mas uns seiscentos...
Ando fugindo de textos que tratam da necessidade de um “centro”. Virou conversa de quem busca o selo de qualidade de analista neutro, que rejeita os extremos: “Nem Bolsonaro nem Lula”. Como nem um nem outro tiranizam meu pensamento por intermédio do amor ou do ódio, não são medidas da minha neutralidade. Essa busca virou uma espécie de angústia. Não misturo política com sentimentos...
Andam à espera do Godot centrista. Que as personagens que postulam esse lugar se apresentem para o debate público. Com quem eu falo? Quem se apresenta como esse tertius com aspirações superiores, distante do mundo real onde pulsam bolsonaristas e lulistas? Quero me apresentar ao líder.
Anuncio que sou uma pessoa boa e sensata, a exemplo de outras que olham para o céu em busca de discos voadores da conciliação. Mas estou preso à Terra. A propósito: qual foi o extremismo vocalizado por Lula até agora? Discordei de quase tudo do que consegui entender de seu discurso sobre economia. Mas é fala de um extremista? Ora...
Quem quer se tornar liderança política tem de se apresentar para o debate. Quantos dos candidatos a candidato do centro afrontam Bolsonaro e sua tropa, reagindo aos ataques que fazem a valores civilizatórios? Quando Paulo Guedes quer meter gastos com inativos no mínimo constitucional previsto para saúde e educação ou garfar 7,5% do seguro-desemprego, onde estão os não extremistas? Tomando chá de camomila diante da proposta inédita de taxar as grandes pobrezas?
Lula deixou a cadeia há 14 dias e, de fato, já polarizou com Bolsonaro, levando o presidente a rever os planos de Guedes para a reforma administrativa. Notem que não faço juízo de valor. O petista forçou o governo a recuar só porque falou alguma coisa. A política rejeita o vácuo. E já deu para perceber o sentido do discurso do ex-presidente no evento havido em Recife, no domingo (17).
“Eu estou vendo os ataques aos LGBTs, aos negros, aos índios. Eu estou vendo o crescimento da violência bárbara contra as mulheres brasileiras. Estou vendo os salários desaparecendo, a aposentadoria ficar cada vez mais distante do trabalhador. E estou vendo que nós estamos com dificuldade de reagir. Vou dedicar cada minuto da vida para libertar o país dessa quadrilha de milicianos que tomou conta do poder”.
Você pode não gostar dos nomes que ele escolheu. Mas ele escolheu os nomes.
Como se percebe, Lula tentará, sim, organizar a resistência aos, digamos, valores espirituais do poder de turno, buscando reunir as várias reações identitárias àquele padrão que o bolsonarismo julga ser a normalidade — composto, segundo o manifesto da tal “Aliança pelo Brasil”, pelos “homens de bem” —, mas vai também investir no descontentamento dos que se opõem às reformas e falar àqueles que, por ora, não estão contemplados nos planos de Guedes e Bolsonaro: os pobres.
Leio na coluna de Solange Srour, nesta Folha, que “quem ganha salário mínimo hoje no país não é pobre”. E ela acrescentou: “Essa é a realidade, infelizmente.” Segundo o IBGE, os 10% da população mais pobres detinham, no ano passado, 0,8% da massa de rendimento, enquanto os 10% mais ricos concentravam 43,1%. Outra realidade. Infelizmente. A política consiste em superar o lamento passivo.
Dá para saber mais ou menos o diagnóstico da esquerda —e se deve incluir Ciro Gomes no grupo, a despeito das divergências. A extrema-direita que está no poder vem demonstrando na prática o que quer. Mas e aquele que aspira à virtude do meio? Que resposta tem a dar aos não pobres do salário mínimo, aos desempregados tributáveis e àquela polarização perversa de desiguais —acho que se pode chamar assim o troço, não?— encontrada pelo IBGE?
Por enquanto, há seiscentos autores à procura de uma personagem que se nega a baixar no centro.
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