- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Jair Messias não teve a capa da “Time” como Greta Thunberg. Ela fala a língua do mundo. Ela acabou vítima do efeito bumerangue da falta de clareza e de consciência política nas decisões que toma
Pirralha com maiúscula, porque ela mesma assumiu como batismo de fogo a classificação descabida e preconceituosa que lhe foi aplicada pelo presidente do Brasil. Como reação descabida por ter ela manifestado horror e indignação contra o assassinato de dois índios guajajara no Maranhão. E por ter compreendido que não se trata de um acaso, mas de um descaso, de um desinteresse do Estado brasileiro pela sorte dos nativos.
Na sequência, a adolescente sueca Greta Thunberg foi escolhida “Pessoa do Ano” pela “Time” e teve seu retrato na capa da famosa revista, que milhões leem, por sua luta justa e necessária em defesa de um mundo limpo, que seja, de fato, patrimônio da humanidade. E não usurpação praticada pela lucrativa economia de emporcalhamento da Terra. Justa homenagem, porque ela infunde esperança e o ânimo da resistência em milhões de jovens e estudantes do mundo inteiro, por sua coragem de interpelar os poderes e os poderosos.
Jair Messias não teve a capa da “Time”, mas tem a primeira página da Secção do Executivo do “Diário Oficial da União”. Não é a mesma coisa, pois é publicação que ninguém lê. Mas é o consolo que pode ter. Seu desdém pelas lutas sociais, pelo direito à diferença, pela liberdade de opinião, pelas questões humanitárias, nestes poucos meses de Presidência, tornou-se emblemático.
Aparentemente, ele quer falar apenas para a minoria obscurantista de seus iguais, os não esclarecidos, os condenados à solidão antissocial e antipolítica do autoritarismo e da intolerância.
O presidente brasileiro saiu em desvantagem, perdeu para uma adolescente. Ela fala a língua do mundo. Ele acabou sendo vítima do efeito bumerangue da falta de clareza e de consciência política nas decisões que toma, cujo sentido não é decidido por ele, o que nenhum político pode ignorar.
Não adianta socorrer-se dos explicadores oficiais do vocabulário presidencial para corrigir esses descuidos. O que o presidente diz não tem o sentido que ele quer que tenha, mas o sentido que pode ter, o da compreensão ditada pela circunstância social e política. Em boa parte, o sentido que o povo, a Pirralha incluída, sabe que tem.
O assassinato de dois índios guajajara, no Maranhão, indica que 519 anos depois da descoberta do Brasil ainda se mata índios no país com base na mesma dúvida que foi severa e criticamente analisada pelo padre Manoel da Nóbrega, no século XVI - se os índios tinham alma ou não, se eram gente ou não. Ou em termos do discurso político oficial, de hoje e da “política indigenista” atual, se são homens da caverna ou não.
Maior se tornam o problema e a apreensão decorrente quando as próprias autoridades do país minimizam as vítimas, satanizam quem as defende e desdenham a gravidade da violência descabida.
Não se trata de tomar ou não providências administrativas e providências policiais, se elas são implicitamente negadas nas falas e nos discursos e sobretudo nos clamorosos silêncios do Estado brasileiro, o silêncio da cumplicidade tácita.
O governante não é obrigado a gostar de índio nem de preto, de pirralho, de quem professa ideias de que discorda porque não as tem. Mas o mandato de nenhum governante tem legitimidade se quem governa não tem apreço por gente.
Do mesmo modo que ninguém é obrigado a gostar do governante tosco e preconceituoso, como mostram os significativos números das estatísticas de opinião política e eleitoral destes dias. Mas não pode deixar de respeitar as instituições e o contrato social que nas leis nos rege e o pacto da unidade na diferença que é próprio da sociedade brasileira.
Hoje, os índios são 900 mil pessoas, de 305 diferentes povos indígenas. Desde a violência genocida dos anos 70, multiplicaram-se nove vezes. Uma verdadeira insurreição demográfica. Já estão chegando ao Congresso Nacional.
São falantes de 274 línguas nativas. Uma delas, a língua tupi ou língua geral, que o general Couto de Magalhães, seu estudioso, batizou com o nome de nheengatu, língua bonita. Ela influiu significativamente na formação do que é propriamente a língua brasileira.
É a língua que falamos no dia a dia, no sotaque, na sonoridade, no vocabulário, na mansidão da pronúncia, nos significados propriamente brasileiros de nossa fala. Em nossa linguagem peculiarmente dupla, no dito e no não dito, na coisa e na sobrecoisa. Uma língua, de vários modos, diferente da língua mãe, a que se fala em Portugal.
O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, em um de seus livros, sublinha que o branco do contato com o índio é o pior tipo de branco, o mais desprovido de valores relativos à condição humana e ao seu semelhante. Cuja mentalidade pode estar perto do poder. Há exceções, e muitas, mas não suficientes.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador emérito do CNPq, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "Desavessos" (Criarte).
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